O diretor francês Olivier Assayas nos convida para uma notável viagem metalinguística sobre o Cinema, a reprodução de uma obra por diferentes atores, a passagem de tempo, a nova realidade do show business e uma reflexão sobre o envelhecimento e a atemporalidade do ator. É um longa com uma complexa mise en scène e com diálogos extensos e profundos que funcionam como um jogo de sutilezas e de referências com o Cinema, o Teatro e a contemporaneidade da internet. Todos esses elementos formam um roteiro bastante enfocado na atuação experiente de Juliette Binoche e de sua principal coadjuvante Kristen Stewart que juntas cooperam para o dinâmico desdobramento da verborrágica cadeia metalinguística presente nesse argumento.
Maria Enders ( Binoche) é uma veterana atriz que está vivenciando um momento de perdas. Está passando por um divórcio, acabou de perder o seu amigo leal, cineasta e dramaturgo que a descobriu e lhe deu Sigrid, um dos papeis mais icônicos e inesquecíveis de sua carreira, e foi convidada para a refilmagem da peça que a consagrou. Entre essas perdas, aceitar a refilmagem está no cerne do argumento pois o seu antigo papel será interpretado por uma jovem e problemática atriz ovacionada internacionalmente, Jo-Ann Ellis (Chloë Moretz), enquanto que ela terá que interpretar o papel de Helena, uma mulher vulnerável e suicida que é dominada por uma paixão. Nesse contexto, Maria Enders não aceita muito bem o papel de Helena, tem que lidar com a aceitação à Jo-Ann Ellis e com o conflito pessoal de ser uma atriz mais velha que não poderá mais interpretar Sigrid. Valentine (Kristen Stewart) é sua assessora e a acompanha nesse drama, realizando a provocação constante nos diálogos sob a perspectiva mais moderna do show business e da juventude.
O longa é um trabalho metalinguístico bastante complexo durante boa parte da narrativa e tem um texto longo e denso que exige do público uma atenção ao papel do ator x a passagem do tempo x as novas demandas do Cinema. Essa característica o torna muito reflexivo para o expectador e, também, muito dramático para Maria Enders. Ela está em um momento solitário da carreira e é uma mulher mais isolada, tanto que aparece em cenas mais reclusas tanto na dimensão espacial do filme (em Sils Maria na Suiça) como também na dimensão psicológica (lidando com seus conflitos). Seu personagem é muito bem construído porque é uma atriz ainda bonita e talentosa mas que está madura e deslocada do mundo real. Em excelente performance, Juliette Binoche torna a protagonista bastante verossímil e ganhou o prêmio do ICS de Cannes por essa atuação. Kristen Stewart faz uma atuação segura e mais madura, o que ressalta que ela está selecionando melhor os seus trabalhos. Sua assistente Valentine dá mais dinamismo à problemática à medida que compreende melhor como o mundo do Cinema, das atrizes e da internet funciona hoje e elas discutem diferentes pontos de vista, além do mais o papel de Kristen Stewart é essencial pois é ela quem ensaia o texto da peça com Maria Enders, ambas inserindo a peça a ser refilmada dentro da narrativa em um belo exercício de metalinguagem. Por fim, Chloe Moretz não é muito exigida mas não compromete o resultado.
Embora Maria Enders seja chamada para novos papéis, todos parecem fúteis e dispensáveis, portanto, reviver a peça que a consagrou é o que parece mais válido. Ela tem um vínculo afetivo com a peça Maloja Snake e ela traz a complexidade das suas contradições, entre elas: como interpretar um papel que não a faz sentir-se tão ousada, segura de si e jovial como a que realizou há 20 anos atrás? Como esquecer Sigrid e imaginá-la na pele de uma atriz Hollywoodiana de péssima reputação como Jo-Ann Ellis? Sigrid era o papel de Maria Enders, a mimésis de sua audaz jovialidade, de suas paixões; mesmo com a passagem do tempo, ela tem dificuldades para se desvencilhar desse personagem do passado. Essa ideia do argumento é muito original no Cinema Contemporâneo pois faz refletir sobre como o Cinema tem a dicotomia de ser atemporal e transitório. Os anos passam, os atores mudam, os personagens exigem novos perfis e sangue novo no elenco, logo o conflito vivenciado por Maria Enders é facilmente mimetizado na realidade moderna de tantos atores que tem que encarar o envelhecimento e a mudança de papéis. Convém salientar que essa narrativa não gira em torno somente da questão do ator e das diferentes gerações do Cinema mas também traz à tona uma reflexão sobre a obra, que pode ser readaptada principalmente quando refilmada sob um novo olhar, sofrer alterações no original ou ser mais valorizada de acordo com diferentes demandas ou contextos.
O diferencial de Acima das Nuvens é o encaixe das peças no jogo metalinguístico com um roteiro ousado e de difícil execução e com a presença de uma atriz fenomenal como Binoche. A narrativa é muito bem desenvolvida plano a plano pelo Cineasta que mantém um controle narrativo excepcional. Como o filme tem muito texto, Assayas consegue equilibrar a palavra falada com imagens deslumbrantes criando uma narrativa de forte impacto visual tanto por causa da presença em cena de Binoche como das bucólicas cenas externas na Suiça.
Ficha técnica do filme ImDB Acima das Nuvens
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