Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Recentemente, o cineasta Kleber Mendonça Filho, diretor de O Agente Secreto, rebateu de forma contundente as declarações do co-CEO da Netflix sobre a hegemonia do streaming. Mendonça Filho foi claro: “o streaming é uma nova e espetacular forma de ver filmes, mas não pode ter o poder de acabar com a cultura da sala de cinema”. Para ele, são as salas que constroem a história duradoura de uma obra, lembrando que nada substitui a experiência física e coletiva. Sua fala não é apenas técnica, mas um alerta urgente sobre como o ecossistema do entretenimento está sendo moldado para enfraquecer a experiência comunitária em favor da comodidade algorítmica.
A cultura digital trouxe uma dualidade irreversível. Se por um lado democratizou o acesso, por outro consolidou uma lógica de consumo rápido e acomodado. Vivemos sob o império das iscas de engajamento, onde a gratificação imediata reduz a capacidade crítica. Algoritmos que recomendam conteúdo sem curadoria fragmentam a atenção e corroem o valor da sala escura. O público questiona o custo financeiro e social de ir ao cinema frente à facilidade dos catálogos, que ironicamente agora incluem anúncios reminiscentes de distopias televisivas. O risco de a sala perder espaço para o desinteresse algorítmico é uma realidade sistêmica que ameaça a alma da sétima arte.
Essa lógica se reflete também nas janelas de exibição, cada vez mais estreitas por interesses econômicos. A escassez de salas não comerciais e a voracidade das plataformas em disponibilizar conteúdo instantaneamente criam uma confusão estrutural. O exemplo de Frankenstein, de Guillermo del Toro, ilustra bem: um lançamento limitado competindo simultaneamente com o catálogo digital revela uma estratégia puramente econômica, não curatorial. O resultado é um mercado em que janelas curtas sabotam distribuidoras e exibidores, tornando a sala física um elo frágil na cadeia de valor do cinema.
Ir ao cinema, além disso, tornou-se um evento de luxo. Os custos de ingressos, alimentação e transporte, somados ao desgaste causado por comportamentos inadequados de alguns espectadores, criam barreiras sociais e educacionais. Muitos preferem o conforto doméstico por economia pessoal. Entretanto, o paradoxo se revela ao olharmos para o teatro. Embora caro, preserva sua lotação por ser uma experiência impossível de replicar no digital. Isso nos obriga a questionar se o cinema, ao render-se à lógica do sofá, não está sacrificando sua própria aura de evento imperdível.
O efeito colateral dessa lógica é a erosão do filme de orçamento médio. O mercado privilegia o blockbuster monumental, empurrando obras autorais para festivais e plataformas digitais. O risco final é a atrofia da capacidade analítica. Sem o hábito da descoberta na sala escura, o público se rende à hegemonia algorítmica que recomenda apenas o previsível. Perdemos o mergulho nas relações humanas ao esquecer que o que nos conecta às histórias são as emoções, algo que nem mesmo a inteligência artificial, por mais sofisticada que seja, é capaz de replicar.
Não adianta procurar culpados isolados. A provocação central é: estamos nos rendendo ao conforto doméstico mesmo tendo condições de vivenciar a sala escura? Se sim, o problema não é apenas econômico, mas cultural e político. O cinema precisa de porta-vozes e de um público que o abrace com consciência. Ir ao cinema é um ato de resistência social, cultural e política. Nada substitui esse encontro magistral entre luz e sombra, entre legado e continuidade. É na catarse coletiva que nos conectamos com nossa essência humana. Defender a sala de cinema é preservar o espaço onde a vida e a arte se fundem em sua forma mais pura, um ritual que não pode ser abandonado.
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