Assim como ocorrido no Brasil, famílias foram impactadas por terem seus amigos, filhos e demais familiares mortos, torturados e/ou desaparecidos durante a ditadura. A injustiça e impunidade trouxeram (e ainda trazem) males dilacerantes à nação. Neste sentido, o filme "Cachorros"(Los perros, 2017) tem uma tônica diferente e interessante ao trazer uma perspectiva feminina e contemporânea sobre como a ditadura, direta ou indiretamente, ainda afeta o presente, inclusive influenciando como alguns indivíduos reagem ao rememorar este passado opressor e violento.
A diretora trabalhou com dois excelentes atores Chilenos, Alfredo Castro ("O Clube", "De longe te observo") e Antonia Zegers ("O Clube"). Ele interpreta Juan, um ex-coronel e atual professor de equitação. Ela interpreta Mariana, a filha de um empresário local, além de representar uma mulher na faixa dos 40 a 45 anos, uma geração que nasceu próximo ao golpe de Estado de Pinochet. Casada com o arrogante Pedro (Rafael Spregelburd), Mariana não é uma pessoa rígida e autoritária, pelo contrário, tem bom humor, descontração e leveza, fazendo total contraponto aos comportamentos rudes e machistas dos homens em cena.
A relação entre Juan e Mariana é nebulosa, um misto de profissionalismo, amizade e sexo. Ela aprende a andar de cavalo com ele, fica atraída por esse homem discreto e misterioso, depois o "relacionamento" evolui para uma necessidade de Mariana conhecê-lo melhor. Ela começa a buscar respostas: "Será que Juan violou direitos humanos?".
Juan é cheio de segredos e traumas, cala-se diante de perguntas, desconversa friamente, pode ser preso a qualquer momento em função de crimes cometidos, provavelmente mortes e torturas na ditadura. Tudo indica que ele foi um instrumento repressor e coercitivo da ditadura, com um histórico de brutalidades e violação de Direitos Humanos, porém em nenhum momento isso é abertamente dito e dialogado entre eles. A narrativa vai se servindo destes silêncios e pontos de interrogação. À medida que eles se envolvem, Juan não se sente à vontade para contar seu passado e está ciente de seu passado monstruoso. Mariana não tem uma postura política, de resistência, está à parte de tudo isso, age de forma espontânea, imprevisível, amável.
Tanto Alfredo Castro como Antonia Zegers são atores experientes e tem uma ótima química, logo os olhares e palavras não ditas funcionam bem no desenvolvimento da narrativa. Porém, o filme não se aproveita tanto da vantagem de ter estes dois excelentes atores. Há uma lacuna mais de roteiro do que propriamente de direção. Falta um texto melhor que potencializa a temática e o trabalho dos atores. Faltam diálogos e conflitos mais densos. Talvez um posicionamento político mais assertivo seria bem-vindo no drama.
Em determinado avanço da história, essa relação entre eles não é tão explorada e a personagem de Antonia Zegers trabalha muito mais sozinha. Com isso, a atriz é a melhor parte do filme. Mariana é casada com um Argentino bem estúpido e está fazendo tratamento de fertilização, sendo assim, na maioria das cenas, ela é silenciada, mal-tratada. Ela não é levada a sério nem no próprio casamento e nem pelo pai, logo, tudo isso mostra o autoritarismo dos homens, tanto o escancarado como o enviesado.
Refletindo melhor sobre os personagens, é compreensível verificar porque Mariana é uma personagem que não tem nada a ver com esse ambiente bruto e machista. Lamentavelmente, ela vai perdendo o brilho, aprendendo a socializar neste contexto duro. Por mais que ela tenha vivacidade e não quer viver de passado, ela encontra um marido bruto, um pai que ri e não tem arrependimento por ter patrocinado a ditadura e um novo amor que tem um passado obscuro e violento.
Marcela Said não quis transformar o seu filme em um debate político impregnado de mágoas da História; isso fica bem evidente na narrativa. É através das entrelinhas que a cineasta vai tecendo uma personagem feminina que não é bem tratada pelos homens da história e, portanto, uma mulher filha da elite que também é vítima e silenciada nos diálogos.
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