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#CinemaBrasileiro por MaDame Lumière
Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Algumas vezes o impacto emocional de um filme no nosso íntimo é tão forte que naturalmente sentimos uma necessidade de quebrar a quarta parede da crítica e se voltar ao leitor com uma confissão intimista de como nos identificamos e respeitamos uma obra cinematográfica. É o que acontece em "A vida invisível" (Invisible Life, 2019), melodrama dirigido por Karim Aïnouz, adaptado do livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha. Nesse texto, usarei a primeira pessoa, em alguns momentos, porque esse é um dos filmes Brasileiros mais belos e pulsantes que já chegaram ao Cinema.
Ambientado no Rio de Janeiro nas décadas de 40 e 50, Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte) são duas irmãs nascidas em um lar conservador que seguem caminhos diferentes. Guida foge com o namorado estrangeiro para outro país, Eurídice casa com Antenor (Gregório Duvivier) e tem que lidar com um relacionamento tradicional e sem amor, além das dificuldades para realizar seu sonho de ser uma pianista. A história se desenvolve com o distanciamento entre as irmãs e seus desafios de ser mulheres invisíveis em uma sociedade patriarcal, machista e opressora. No último ato, Eurídice é interpretada brilhantemente por Fernanda Montenegro em meio às cartas enviadas por Guida ao longo de muitos anos.
Eu demorei para assistir a esse filme porque eu já sabia que se refere à uma experiência marcante e dolorosa de como as histórias de mulheres foram silenciadas e/ou apagadas da história. Eu sabia que, como mulher, eu teria que preparar-me para mergulhar na narrativa com racionalidade, mas também com uma emoção feminina muito pessoal. Histórias de mulheres me sensibilizam por várias razões, e muito especificamente, porque eu tenho uma visão de que lidamos com um sistema opressor que, todos os dias, tenta tornar as mulheres invisíveis.
Assim, em um exercício cotidiano de sororidade e empatia, "A vida invisível" é um filme sobre mulheres corajosas que tiveram (e ainda tem) que enfrentar essa invisibilidade no amor, no sexo, na família, no trabalho, na maternidade. É um filme para todos, inclusive recomendado para os homens que são educados nesse sistema. Um sistema que também não os ensinou a um bom diálogo na perspectiva da equidade de gênero.
"A vida invisível" é tão belo pois não é clichê. É sincero nas interpretações, nos diálogos, nas situações e na condição feminina no país. Toda a narrativa equilibra as jornadas das duas irmãs que, embora distantes uma da outra, tem uma conexão do desejo pelo reencontro, do cuidado pela outra, do afeto que supera o silêncio e a distância.
Karim Aïnouz orquestra todos esses elementos: a diferença de personalidades e escolhas das irmãs, a família tradicional dos anos 1950, o casamento como instituição patriarcal, a objetificação da mulher, a pressão e consequências da maternidade, as dificuldades das irmãs no trabalho e na carreira. Escrito por Murilo Hauser, com coparticipação de Inés Bortagaray e do cineasta, o roteiro se ocupa em contar uma história universal, capaz de criar um laço de identificação com tantas outras mulheres no mundo. Em 2019, o longa ganhou a Mostra "Un Certain Regard" do Festival de Cannes, prêmio dado a filmes que abrem o olhar a uma cinematografia diferenciada, com frescor e excepcional direção.
A direção de arte, fotografia, figurino e maquiagem são bem articulados e integrados pois criam uma época muito verossímil para essas mulheres e à apresentação ao público. A vida nas periferias do Rio de Janeiro, o trabalho de Guida em uma fábrica com homens machistas e brutos, a casa classe média de Eurídice e Antenor, os bailes cariocas frequentados por Guida, os momentos de pianista de Eurídice, o surgimento de Eurídice já idosa, enfim, há madura configuração em cena que busca mostrar a invisibilidade dessas mulheres em interação com os diversos espaços e pessoas, e ainda assim, bastante solitárias e distantes.
O belo da direção e do Cinema de Karim Aïnouz é que ele tem sensibilidade precisa para contar histórias sobre mulheres e é excelente na direção de atrizes. Há dois filmes do diretor que já haviam comprovado tal competência: "Céu de Suely" (Love for Sale, 2006) e "Abismo Prateado" (The Silver Cliff, 2011) nos quais as protagonistas, em uma determinada combinação de tempo, espaço, decepção e liberdade, saem pelas cidades após serem abandonadas pelos seus companheiros, desse modo, mostram desamparo, coragem e solidão. Ademais, o cineasta também se destaca em "A vida invisível" ao executar planos sofisticados com um retrato regional do Rio de Janeiro que se mistura com as realidades domésticas e existenciais das protagonistas.
Nesse sentido, um dos recursos narrativos que também valorizam a contação da história e diferentes aspectos das trajetórias dessas irmãs, diz respeito à trilha sonora de Benedikt Schiefer. Ela é responsável pela densidade dessas emoções e passagens da vida, guardando em si todas essas dores, frustrações, sonhos, silêncios e pessoas que atravessam suas vidas. Destaca-se "A whole life together", traduzindo ao pé da letra, "Uma vida toda juntas", que percorre toda essa busca e desencontro das irmãs.
Atriz Barbara Santos (à esquerda) como Filomena: Sororidade, amizade e empatia
Em outra das mais dramáticas composições, "Filomena", o espectador ouve a canção que dá título à melhor amiga de Guida, Filó (Bárbara Santos), uma das mulheres que mais ajudou-a em seu retorno ao Rio de Janeiro e que, enfrenta a fatalidade de um câncer. O papel de Barbara Santos é tão relevante como coadjuvante porque evoca essa real sororidade que independe de sangue, raça e classe social. Outra canção bem selecionada para a trilha é "Estranha forma de vida", um clássico fado interpretado por Amália Rodrigues. Os fados portugueses tem essa poética do destino, do fatal, da sina, assim, bem aderente à realidade dessas mulheres.
Há uma riqueza narrativa que dá conta dessas várias nuances nas trajetórias das irmãs, outro belo presente do filme ao público. Sendo Guida, a mais libertária, ela lida com as dificuldades de ser mãe solteira, exilada dos pais, e uma mulher que não desiste de buscar algum afeto, prazer e flerte com os homens. Verdadeiramente, ela deseja esse livre viver, além da vontade de reencontrar a irmã. Ela continua escrevendo cartas à Eurídice, cartas que não são entregues à destinatária, criando um suspense ao drama e a esperança de que um dia elas se abracem. Será que elas se encontram ou não?
Um exemplo de plano sofisticado do diretor. O quase encontro das irmãs. Posicionamento fascinante da câmera.
Por outro lado, Eurídice é aprisionada em um casamento e carrega um senso de responsabilidade familiar, apesar de sentir-se inadequada àquela situação. Em algumas cenas bastante fortes e viscerais, ela é a imagem da mulher que, ainda que ame a música e tenha tanto talento como pianista, aceitou o casamento e a condição de esperar pela oportunidade mesmo que, talvez, ela nunca consiga ser uma pianista profissional. Ademais, um aspecto interessante é observar como esse casamento se manifesta na história e como ele representa contradições entre a indiferença e a tentativa de preservação e sobrevivência. Na maioria das vezes, o casamento é uma prisão institucionalizada para a mulher.
A escolha por Gregório Duvivier para o papel de marido foi um ótimo acerto. Há algo de tragicômico no personagem porque Antenor é, ao mesmo tempo, tolo e fraco, mas também abusivo e repugnante. O personagem é incômodo exatamente porque ele não chega a ser um homem escrachadamente muito ruim, e é por isso que o jeito dele é onde mora o perigo. Ele se comporta como o clássico machista que tenta ser "bonzinho"; aquele marido que demonstra comportamentos passivo-abusivos, dizendo ser apaixonado e "bom marido".
A noite de núpcias do casal é uma cena bastante constrangedora e nauseante. Dá uma dimensão de quem é ele e como esse casamento se inicia totalmente sem carinho e amor. Pra falar a verdade, um início muito violento. Além disso, ele é aquele tipo de homem mais estável que trabalha nos correios, e que ajuda os pais da esposa, entretanto, ele não deixa de ser um homem que não deseja que ela tenha sua carreira, que viaje ao exterior, que fique longe da família. Os abusos existem no cotidiano do casal. Ele utiliza alguns discursos machistas e trata a mulher sob uma perspectiva de poder, dominação e sexo.
"A vida invisível" é sobre invisibilidade, mas também sobre tornar as mulheres visíveis. Tudo isso está nele, pulsante e doloroso. A história está registrada e está sendo contada no Cinema e ao mundo. Em sua humilde evocação, levando em conta que não é um filme exibicionista ou que força uma poesia ou militância, está uma das fontes de sua grandiosa força narrativa. Karim Aïnouz não tenta repetir padrões e nem vitimizar as mulheres, mas contar histórias reais e verdadeiras. São histórias de décadas e décadas anteriores que continuam se repetindo na contemporaneidade.
A presença de Fernanda Montenegro como a senhora Eurídice é tão necessária como também arrebatadora. É o momento das lágrimas e também de uma gratidão por uma verdade que precisava vir à tona, dessa maneira, é um momento precioso com a visita de uma atriz de primeira grandeza.
É um filme que me fez desabar em lágrimas no desfecho. Chorei sim, muito consciente do que assisti. Chorei pelo desencontro das irmãs e em saber que, muitas situações de invisibilidade levam as mulheres para caminhos que nem sempre são os que elas desejam. Estranhamente, mesmo em sua vulnerabilidade de gênero, há uma força tremenda na história. É um filme poderoso para as mulheres comprenderem que, apesar de todos os desafios e dificuldades, ser mulher é um presente conquistado e celebrado todos os dias.
Não é fácil ser mulher; nunca foi e nunca será, porém, estamos vivas para contar nossas histórias e ser cada vez mais visíveis.
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Cristiane Costa, MaDame Lumière