Por  Cristiane Costa ,  Editora e blogueira crítica de Cinema, e specialista em Comunicação As recentes marchas que tomam a Avenida Paul...

Cinema vs Série | Ângela Diniz em Duas Telas: Espelhos de uma Tragédia

 




Por Cristiane Costa,  Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação




As recentes marchas que tomam a Avenida Paulista e ruas de todo o Brasil, com o grito uníssono de mulheres exigindo o direito de permanecer vivas, não são apenas manifestações políticas: são atos de sobrevivência. Nesse cenário de urgência, o Cinema e a TV assumem um papel vital ao expor a face símbolo e maléfica de uma ordem social masculina que insiste em controlar corpos e destinos.



Ao revisitar a tragédia de Ângela Diniz através de duas produções distintas, somos forçados a encarar como a violência de gênero é meticulosamente construída e silenciada pelo sistema. Mais do que biografia, essas obras funcionam como denúncia do cerceamento da autonomia feminina, lembrando que a luta de 1976 ainda ecoa nas trincheiras cotidianas das mulheres de hoje.



As interpretações de Isis Valverde e Marjorie Estiano divergem conforme as escolhas de roteiro e direção de cada obra. No longa-metragem dirigido por Hugo Prata, Isis foca no isolamento psicológico e na melancolia de uma Ângela afastada da filha e confinada em Búzios sob o controle sufocante de Doca Street, vivido por Gabriel Braga Nunes.



Já a série da HBO Max com direção de Andrucha Waddington permite que Marjorie explore o magnetismo social e a energia solar de Ângela. Sua performance exala a liberdade que, ironicamente, serviu de gatilho para o ódio de seu algoz, interpretado por Emílio Dantas. Enquanto Isis entrega uma camada vulnerável e melancólica, Marjorie personifica a mulher livre que se recusa a se submeter às convenções sociais. Ambas entregam trabalhos excepcionais ao humanizar uma figura atravessada por uma sociedade que, em 1976, não oferecia redes de apoio a mulheres que ousavam romper silêncios.



Na construção do antagonista, o poder masculino ganha facetas distintas, porém igualmente sufocantes. No cinema, Gabriel Braga Nunes vive um Doca Street com personalidade marcante e charme social, focado em demandas profissionais que deixam Ângela em uma solidão de espera, mas que revela uma agressividade sedutora e perigosa.



Já a versão da HBO Max, vivida por Emílio Dantas, apresenta um homem desagradável e antipático desde o primeiro contato. É um perfil antissocial, cuja agressividade é extrema e perturbadora, já marcado por um histórico de rompimento traumático com a ex-esposa. Embora as visões sobre o vilão divirjam, entre a sedução do cinema e o asco imediato da série, ambos se tornam insuportáveis na tela ao minarem a autonomia de Ângela. O ciúme e o controle obsessivo se repetem, provando que, independentemente da máscara, a violência estrutural busca sempre o mesmo fim: a supressão da voz feminina.



A estética do confinamento utiliza o cenário da Praia dos Ossos como uma poderosa metáfora para o cerceamento da liberdade. No cinema, o local é apresentado inicialmente como uma promessa de recomeço para o casal vivido por Isis Valverde e Gabriel Braga Nunes. Contudo, o que deveria ser um refúgio revela-se gradualmente uma prisão isolada, onde Ângela é privada de interações sociais.



Já na série da HBO Max, o contraste é mais drástico. A narrativa expõe a vida vibrante de Ângela no Rio de Janeiro para, em seguida, mergulhá-la na clausura imposta por Emílio Dantas. É aqui que as obras escancaram um dos sinais primordiais de um parceiro tóxico: a tentativa deliberada de afastar a mulher de sua rede de apoio, familiares e amigos. Infelizmente, muitas mulheres confundem esse afastamento forçado com demonstrações de amor ou cuidado, entrando inadvertidamente em um jogo de controle. O agressor instrumentaliza a geografia de Búzios para silenciar Ângela, provando que afastar a mulher de quem a protege é a etapa fundamental para a dominação absoluta.



A série da HBO Max mergulha com profundidade no tribunal da imagem que se seguiu à tragédia, revelando uma sociedade dividida e, em grande parte, cúmplice do algoz. Por ser uma mulher libertária que ousou separar-se, morar sozinha e desafiar convenções sobre a guarda dos filhos, Ângela foi pré-julgada por uma burguesia que não admitia sua autonomia.



A produção destaca a figura do advogado de defesa Evandro Lins e Silva (Antonio Fagundes), que orquestra o assassinato de reputação da vítima para atenuar a culpa de Doca Street, um reflexo nítido de como a branquitude e o status social operam para blindar o agressor. Mesmo vinda de uma família influente, Ângela morreu em uma solidão imposta pela violência, sendo posteriormente julgada por uma sociedade que preferiu condenar sua conduta moral a encarar a barbárie do feminicídio. Esse processo ecoa nos linchamentos virtuais de hoje, onde a narrativa do algoz ainda é usada para silenciar a dor e o direito à vida de mulheres que se recusam a caber em padrões servis.



Historicamente, é imperativo notar o abismo entre a cobertura da imprensa em 1976 e a reinterpretação proposta por Duda Almeida (roteirista do filme) e Elena Soárez (roteirista da série). Se na época o caso foi enquadrado sob a ótica sensacionalista da “legítima defesa da honra”, as produções atuais deslocam o foco para o feminicídio estrutural. Tecnicamente, cada obra constrói essa atmosfera de forma distinta: o cinema aposta em fotografia saturada e ritmo de suspense clássico para chocar, enquanto a série da HBO Max utiliza uma trilha sonora que evoca a efervescência dos anos 70 em contraste com a frieza do bunker psicológico de Búzios. Essa diferença de linguagem é vital, pois o fôlego da série permite desdobrar a rede de fofocas e o isolamento social com densidade que o filme, em sua brevidade impactante, apenas sugere.



Sob o olhar contemporâneo, ambas as obras deixam de ser meras reconstituições para se tornarem ferramentas de debate sobre a urgência de leis e políticas públicas efetivas. Elas dialogam com o público atual ao expor que o padrão de silenciamento e a manipulação da imagem da vítima permanecem como heranças nefastas. A dimensão pedagógica se amplia quando percebemos que o tribunal da internet herda vícios do tribunal conservador da década de 70. Ao dar visibilidade ao que antes era invisibilizado pelo privilégio masculino, cinema e streaming contribuem para uma reeducação do olhar, essencial para que as novas gerações que hoje ocupam a Paulista não aceitem retrocessos nas representações femininas e na defesa da vida.



O legado pedagógico das obras reside em expor uma dinâmica social em que o homem é historicamente poupado de suas responsabilidades, seja pela superproteção do sistema ou pela incapacidade de lidar com mulheres fortes. A série da HBO Max, por ter maior tempo de tela e uma direção de época superior, destaca-se como o produto mais interessante ao permitir que Ângela seja lembrada não apenas como uma vítima melancólica, mas em sua plena alegria de viver.



Ambas as produções são válidas para observar os comportamentos masculinos que ressoam como feridas abertas na contemporaneidade, mas é a série que melhor humaniza o lado exuberante da personagem que tanto incomodou o sistema. O veredito final reafirma: a verdadeira conexão se constrói na escuta e na autonomia, lembrando às futuras gerações que a luta nas ruas precisa ser acompanhada por leis que impeçam que a insegurança masculina destrua a felicidade feminina.








Cotação média: 2,5 estrelas para o filme e 3,5 estrelas para a série. 




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