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Mostra SP: A Sombra do meu Pai (My Father’s Shadow, 2025)

 



Mostra internacional de Cinema de São Paulo

16 a 30 de Outubro de 2025



#MostraSP #Animação #49ªmostra #49mostra #euvinamostra #FestivaisDeCinema


Por Cristiane Costa,  Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação



A Sombra do meu pai: A Paternidade como Alicerce em Meio à Crise Nigeriana



Histórias de amadurecimento são verdadeiros ritos de passagem, e se tornam especialmente pungentes quando entrelaçam relações familiares, como pais e filhos, com a figura do grande pai coletivo: a nação como lar. Quando esse país está sob ameaça política, o amadurecimento é muitas vezes sustentado pela figura paterna, que se torna o alicerce fundamental para enfrentar uma realidade hostil.




A Sombra do Meu Pai (My Father's Shadow, 2025), dirigido por Akinola Davis Jr., é um dos destaques da 49ª Mostra SP e recebeu Menção Honrosa na Competição Caméra d'Or do Festival de Cannes. Apresentado como um conto semiobiográfico ambientado na Nigéria durante a tensa crise eleitoral de 1993, a narrativa percorre um dia na vida de um pai e seus dois filhos pelas ruas, da casa até a capital, Lagos. Esse percurso físico se transforma também em um trajeto emocional, onde a figura paterna emerge como eixo da narrativa. A experiência se desenrola em deslocamentos por lotações e motos, conversas sinceras à beira-mar, um banho libertador e um momento de tensão com militares.







Na essência, o filme se apoia na figura do pai, interpretado por Ṣọpẹ́ Dìrísù, que sustenta a infância dos filhos pelo companheirismo e pela busca desesperada de um dinheiro que lhes garanta dignidade. A obra revela, contudo, que a nação (esse pai coletivo) falha miseravelmente em meio à miséria e à repressão. Em parceria de roteiro com o irmão Wale Davies, o cineasta realiza um belo trabalho de direção e fotografia, embalando a experiência com um olhar sensível ao cotidiano da Nigéria. O público se torna testemunha desse dia a dia que combina paternidade, identidade e memória. Muito da doçura do longa provém dessa relação não idealizada, mas capaz de marcar a importância da referência paterna às crianças em um momento crítico da história nigeriana. A afeição dos filhos, representados pelos talentosos Godwin Egbo e Chibuike Marvellous Egbo, é palpável em cada cena.




Há um equilíbrio notável entre a tensão histórica que leva ao clímax e a sustentação de uma memória muito particular do cineasta. O cinema torna-se território de revisitação afetiva e política desse passado, provocando uma reflexão sobre se a história nigeriana mudou ou se ainda padece de similaridades com relação a golpes e repressões. O dado histórico é essencial: o general Ibrahim Babangida cancelou uma eleição democrática vencida por MKO Abiola, gerando um campo de batalha de protestos e mortes.




Neste contexto, a memória simboliza uma chama inextinguível que reside em nós, sustentada pela relação entre pais e filhos. Relembrar esse momento é uma forma de declarar: “Tenho uma história e uma memória, e ambas não serão esquecidas.” É um ato de resistência que assegura que não esqueceremos o mal que nos fizeram, e que ainda nos fazem. A memória assume, assim, um significado universal, pois garante que podemos ser resistência, amplificando o significado do longa para além de seu contexto específico. Se temos nossa família, nosso lar, nosso país, as memórias que giram em torno de nossa identidade e pertencimento não serão obliteradas, mas serão o combustível para não desistirmos de lutar contra o autoritarismo político e a miséria social.







A opção estratégica de Davis Jr. por priorizar a memória afetiva e a sutileza da denúncia nos traz a convicção de que nossas relações de afeto, assim como a construção de nossas memórias e identidade, não podem ser usurpadas por um golpe. Apesar da triste história da época, o filme pulsa com a relação genuína e bela entre o pai e seus filhos. Isso é, em si, um ato de resistência: uma maneira de descolonizar a narrativa ao refutar o estereótipo de que as histórias africanas carecem de força e se limitam à miséria. O papel do diretor é uma escolha intencional de roteiro e direção que valoriza o afeto como um alicerce que não pode ser golpeado, mesmo com a violência à espreita e circulando em alguns planos. Entendemos, assim, que se temos um alicerce afetivo forte, a memória se estabelece como resistência duradoura.




O fato de a obra ser semiobiográfica e coescrita pelos irmãos Akinola e Wale Davies sugere que a memória afetiva é um exercício de resgate e validação coletiva. Essa colaboração criativa transcende a autoria individual para se tornar um manifesto de identidade familiar e cultural. Essa é a matéria humana colocada a serviço do coletivo e da memória. Afinal, quantos filhos perderam seus pais para a repressão e a violência? Quantos pais perderam seus filhos em um mundo corrupto e agressor? Milhares. Ao transmutarem a perda e a saudade em arte, os irmãos nos dão a possibilidade de resgatar os afetos que ainda não nos demos conta de que estão sendo perdidos, ou que podem se perder a qualquer momento em sociedades intolerantes.







O diretor opta por priorizar a memória afetiva do pai em vez de explorar grandes conflitos diretos com os antagonistas. Assim, os problemas daquele dia são sugeridos, seja pelas falas entre adultos, seja pelos detalhes de extrema pobreza e carências que a população nigeriana enfrenta. O filme, desse modo, consegue denunciar sem negligenciar a mensagem de que, quando uma nação está em crise ou oferece um clima de desconfiança e descaso, o pai humano ainda é a coluna que pode sustentar os momentos mais acolhedores com os filhos.




A Sombra do Meu Pai é um filme sutil e de uma beleza rara. O diretor utiliza a arte cinematográfica e seu talento para construir um dia com o pai que eles, de fato, não chegaram a conhecer muito bem. E é nessa poderosa conexão que o cinema mostra sua força: a de propiciar os afetos que desejamos, e a de, simbolicamente, ressuscitar os mortos para a memória.





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