Mostra internacional de Cinema de São Paulo
16 a 30 de Outubro de 2025
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Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
The President's Cake: A Inocência Roubada e o Compromisso da Sobrevivência
O cinema é uma caixa de surpresas que eu abraço todos os dias. Logo após ser surpreendida pelo sabor doce da experiência cinematográfica, discorrer sobre The President’s Cake é um privilégio. O filme, vencedor da Caméra d'Or no Festival de Cannes e representante do Iraque na corrida pelo Oscar 2026, é um presente que tive a sorte de assistir na Mostra SP (e o melhor: houve um alinhamento enérgico, pois comprei o ingresso no mesmo dia, sem planejamento). O longa, dirigido por Hasan Hadi, estreante com sensibilidade de ancião, com certeza é um dos melhores filmes da Mostra e ganhou o Prêmio do Público na Quinzena dos Cineastas. É uma daquelas narrativas que já tenho licença poética para falar na primeira pessoa do singular, ainda mais por eu ser uma educadora.
Filmes protagonizados por crianças são muito diferenciados porque elas são bastante autênticas. Digo com segurança: houve uma época que tive o presente de educar crianças, e posso lhes dizer que foi o momento da minha vida que mais me senti amada, no campo dos afetos genuínos que há na humanidade. Por isso, ver crianças como Lamia vivendo sob opressão é ainda mais dilacerante. A criança é incrivelmente sincera em tudo que realiza. Neste filme, que fala sobre uma infância sofrida na ditadura de Saddam Hussein, é ao mesmo tempo emocionante e doloroso ver que infâncias são vividas na miséria não apenas de recursos, mas em uma miséria de abusos de poder. Em meio aos destroços, a criança ainda expressa essa doçura, que é mais acolhedora do que um pedaço de bolo saboroso.
No premiado filme de Hasan Hadi, o contexto é absurdamente miserável, ambientado no Iraque dos anos 1990. A população sofre de condições mínimas de sobrevivência, com falta de alimentos e poderosos que usam isso a seu favor. Lamia (Baneen Ahmad Nayyef), com 9 anos, vive com a avó em uma região muito pobre e cercada por rio pantanoso. Em uma das idas à escola, ela é sorteada para fazer o bolo do presidente, uma das imposições do estadista que determina que as escolas do país preparem um bolo para seu aniversário. Lamia percorre uma jornada entre a ternura e o medo para conseguir os ingredientes.
Partindo de uma ideia controversa, o diretor consegue realizar um diamante cinematográfico. O primeiro choque é observar o quão absurda é a imposição de um bolo para famílias que nem têm dinheiro para comer. A inconsistência começa aí, e não é surpreendente vinda de uma ditadura; ainda assim, choca pela desumanidade e autoritarismo. Mas, por outro lado, é possível observar que as crianças têm acesso à essa orientação, e, logo, esse é o projeto do país nesse momento histórico: uma educação que impõe e não acolhe. É uma pedagogia da submissão, não da formação. O que alivia esse tom pesado é a criatividade de Lamia, ao lado do seu amigo. Juntos e com uma sabedoria que alivia a dor, eles se esforçam bastante para conseguir os ingredientes para o bolo.
O diretor tem bastante senso de direção, tanto de atores mirins como de sua câmera e ângulos. É uma técnica expressiva e ao mesmo tempo leve em um ambiente hostil, o que lhe deu um reconhecimento merecido. É aquele tipo de filme que, a cada plano, abraça o olhar e o conduz com delicadeza por uma realidade brutal. Há detalhes claros da violência de gênero, que não respeita nem idoso, nem mulher grávida e muito menos criança, mas a forma como o diretor coloca é extremamente bem articulada, de modo que ele consegue posicionar o espectador para ver o que os homens se tornam em uma sociedade bastante patriarcal, capaz de usar dos privilégios para trocar comida por prazer, poder e autoridade. É nesse cenário que Lamia precisa encontrar força para proteger sua dignidade e sua família.
A atuação crua e terna de Baneen Ahmad Nayyef é incrível. Por meio dela, o diretor consegue elevar uma narrativa com uma honestidade brutal, mas ao mesmo tempo, com uma protagonista que tem um verdadeiro senso de compromisso e amor por essa responsabilidade. Lamia entende que, como a avó não tem dinheiro para ajudá-la a fazer o bolo, seu compromisso, mesmo sob coerção, é assegurar sua segurança e a de sua família. Ela não tem saída, mas o faz com um amor concreto.
E como entender esse compromisso? Lamia é guiada por um profundo amor, respeito e a necessidade de sobrevivência, o que a confere uma intuição aguçada para negociar e buscar alternativas, pois ela sabe a realidade dela e da avó. Ainda que eu não tenha ideia do que seria viver sob uma ditadura, pois provavelmente eu seria uma das mulheres silenciadas ou punidas por ousar pensar diferente, posso compreender a realidade de Lamia e de todas aquelas crianças que louvam o nome de um ditador, mas que passam fome em suas casas. É uma lógica da sobrevivência e do compromisso familiar. Assim, muito do nosso compromisso como público é compreender que há realidades e culturas diferentes e que, muitas vezes, estar seguro é proteger e amar sua família.
Lamia é uma das personagens mais sábias e amadurecidas dentre os filmes que já assisti sobre a infância. O amadurecimento dela não é ingênuo, pois em várias cenas, ela tem noção do perigo. Mas, ainda assim, há um valor acima da média, que é seu amor incondicional e uma certa esperança naquilo que ela tem aos olhos, como ainda obedecer um governo que é a única rota de escape da miséria. O diretor, Hasan Hadi, consegue, direta ou indiretamente, fazer uma denúncia eficaz e mostrar o absurdo com uma ironia certeira. Infiro que ele deve achar a ideia do bolo um verdadeiro absurdo, um traço narcísico do ditador. Ao não seguir uma lógica de batalha e guerra, ele foi muito mais potente. Por meio de Lamia, compreendemos um pouco mais porque governos totalitários não desejam empoderar a população e tirar o povo da miséria: porque isso é uma ameaça a eles.
The President’s Cake traz também uma perda da inocência, em uma realidade que apenas o amadurecimento mostrará que, ao fim, poderosos ainda precisam de pessoas pobres. É um filme que consegue ser politizado sem mostrar diretamente a política. Na minha experiência, colocar uma garota como protagonista é formidavelmente corajoso e nobre por parte do diretor e um grande acerto. Por isso, é um dos melhores filmes da Mostra e, se tiver repescagem, que ele possa ser oferecido em mais sessões e logo venha para a distribuição nacional. Lamia não é apenas uma sobrevivente. Ela é a prova de que a esperança resiste, mesmo quando tudo parece ruir.




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