Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Natural do Japão, Naomi Kawase é uma cineastas Asiáticas que mais participam da Mostra SP e uma das melhores contemporâneas e expressivas do seu país. Sob a chancela de outros festivais globais e com boa aceitação do público, ela tem apresentado uma produção ativa que continuamente aborda dramas familiares, desde temas relacionados à maternidade passando por velhice, amor, vida e morte. Entre os títulos, o público pode explorar a sólida cinematografia que já passou no evento: A Floresta dos Lamentos (2007, 32ª Mostra), Hanezu (2011, 35ª Mostra), O Segredo das Águas (2014, 38ª Mostra), Sabor da Vida (2015, 39ª Mostra) e Esplendor (2017, 41ª Mostra).
Nessa 44ª edição, o festival traz Mães de Verdade (True Mothers, Asa Ga Kuru, 2020), adaptação literária baseada na obra de Mizuki Tsujimura em longa-metragem sensível e melodramático, com roteiro da própria diretora. Aborda a história de duas mães cujos caminhos se entrecruzam novamente: Satoko (Hiromi Nagasaku), a adotiva, e Hikari (Aju Makita), a biológica. Dadas as dificuldades para Satoko e o marido (Arata Iura) terem um filho natural, eles recorrem à uma associação de adoção dirigida por uma senhora (Miyoko Asada) que acolhe jovens sem condições de criar seus filhos. Após certo período, uma jovem desconhecida e estranha surge na vida do casal, diz ser a mãe biológica e deseja a criança de volta.
Graças ao fluído e competente trabalho de montagem, o longa percorre a vida de Hikari, que recebe maior enfoque na trajetória materna, apresentando ao público como se deu o primeiro amor, a gravidez e os impactos emocionais e materiais na vida da jovem. É interessante perceber que, não necessariamente há um forte conflito presencial e cênico entre as mães. Essa boa decisão abre espaço para uma narrativa que não exclui as duas figuras maternas, e não tem a intenção de cobrar um julgamento de valor de quem é melhor do que a outra. Acima de tudo, trata-se de um drama familiar com evidente empatia pela condição e dor de cada uma.
Naomi Kawase tem uma história bastante sensível em sua base familiar. Segundo sua biografia, o pai deixou a família, talvez isso explique muito do seu apego e dedicação à uma cinematografia com histórias mais realistas que convergem em conflitos interpessoais nas relações familiares e expandem seus dramas para o grande público. Seu Cinema guarda em si grande sensibilidade na direção de elenco e de fotografia, respectivamente, com um Cinema claramente japonês, no qual há muitas hesitações, silêncios e expressões corporais e não verbais que trazem ao plano uma intensa subjetividade. Em cena, esse diálogo se estabelece com a natureza (luz do sol, paisagem do mar, flores de cerejeira, entre outros) e com a música central (uma canção de mãe para o filho).
Todas essas questões permeiam a narrativa que, embora não seja o melhor da diretora, é uma experiência bastante dramática e comovente porque cria um elo com essas mães e suas diferentes dores. Na verdade, de uma forma ou de outra, ambas são mulheres sozinhas que lidam com o drama da maternidade, seja a biológica ou adotiva. Até mesmo a diretora da associação de adoção teve uma vida sem filhos naturais e optou por ajudar outras jovens como se fossem suas filhas. Em alguns momentos da narrativa, por trás de uma conduta mais racional na reunião com os candidatos a pais adotivos e na direção da instituição, ela parece ser mais fria, porém, de fato, ela realiza um trabalho difícil, delicado e sensível. No geral, são histórias sobre mulheres no papel materno.
Há uma diferença inter geracional e de classe entre as duas mães do garoto Asato que traz realidades femininas nesse contexto cultural. Satoko é uma mulher mais madura, classe média, com o apoio afetivo e material do esposo. Por outro lado, Hikari é a adolescente que engravidou na primeira relação sexual e abandonada pelo namorado. Vive em uma família tradicional, pobre e sem posses, que cobra dela condutas e comportamentos mais rígidos e moralistas em um Japão cuja cultura também foi construída nessa base de tradição.
Com isso, Mães de Verdade delineia dois retratos maternos principais, apesar de que Hikari tem mais espaço, exatamente por ser a mãe que gerou o filho e não pode permanecer com ele. Muitas vezes, a sociedade tende a tornar mais visível o drama da mãe adotiva, seja parabenizando-a pela adoção e decisão humanizada, seja mostrando as dificuldades que a mesma teve para gerar filhos. É notável que o filme muda esse padrão, e isso coopera para se colocar no lugar da mãe adotiva.
A narrativa joga maior tempo de projeção no drama adolescente e como há jovens que são abandonadas (ou toleradas) pela família, como há homens que não assumem responsabilidades pela gravidez das jovens e como há instituições filantrópicas que não sobrevivem no meio e não conseguem mudar a triste realidade dessas jovens de forma permanente.
Outro aspecto interessante no roteiro é considerar que o problema da não gravidez não é de Satoko, já que muitas mulheres são julgadas por serem incapazes de conceberem uma criança. Seu marido tem uma disfunção relacionada à produção insuficiente ou quase nula de esperma, assim, embora o tema da infertilidade masculina não seja aprofundado aqui, ele é evidenciado como algo que faz parte da história do casal e com o qual eles lidam de forma madura, aceitando uma adoção de maneira consciente e responsável.
Mães de Verdade é como um filme voz sobre mulheres. Ele tem algo a dizer sob uma perspectiva bem feminina, ainda que seja um filme que fala sobre adoção e maternidade, ele pode ser facilmente reconhecido em outros contextos e histórias diferentes pois diz respeito à uma questão de gênero na sociedade que também está inserida em outros temas transversais como trabalho, juventudes, educação, família, sexo, entre outros.
Ainda que a lacuna qualitativa do filme foi facilitar algumas escolhas como, por exemplo, não mostrar a burocracia da adoção ou não narrar os desdobramentos mais complexos da relação entre a mãe adotiva e a mãe biológica, a história consegue ser verossímil e sensível considerando os dramas japoneses já dirigidos por Naomi Kawase. Dificilmente seus dramas chegarão a conflitos violentos em cena ou terão arcos dramáticos sofisticados, pelo contrário, são sutis e imageticamente poéticos porém eficientes em lançar a problematização social.
Mães de Verdade faz parte das histórias nas quais as mulheres são dilaceradas e silenciadas em seus percursos de altos e baixos. São histórias nas quais, ou são invisíveis, ou são levadas a circunstâncias difíceis em função de contextos e culturas locais, descaso ou desprezo de um sistema que não as acolhe verdadeiramente. São histórias que inspiram sororidade e empatia, mas também são histórias que exigem esforço e compreensão do lugar da mulher em uma sociedade patriarcal e conservadora que as torna invisíveis e/ou inadequadas.
Considerando essa perspectiva, há que ser reconhecido o valor da história e a contribuição do excelente Cinema de Naomi Kawase. A história precisa chegar a um nível que, até mesmo uma mulher, precisa reconhecer outra mulher. E por que? Porque muitas mulheres são invisíveis, sendo mães ou não. É também compreensível porque algumas mulheres não se sentem à vontade em abandonar os filhos; porque é um duplo abandono e uma dupla violência, pois ela também foi abandonada em determinado momento da vida.
Fotos: uma cortesia via assessoria Mostra SP
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