Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
17 Quadras (17 Blocks, 2019) é muito mais do que um documentário, é uma história de amor familiar para as pessoas poderem amar mais umas às outras e lutar contra qualquer cultura de ódio. Centrado no cotidiano da família Sanford por duas décadas, com imagens documentais da família e do lar, com suas lutas contra pobreza, violência, drogas, racismo, assim como sua busca por sonhos, projetos, amor e aceitação, 17 Quadras é um realista e comovente filme sobre uma família negra, moradora de uma das áreas mais violentas próxima ao Capitólio dos Estados Unidos.
O diretor e jornalista Davy Rothbart conheceu os Sanfords em 1999 nessa periferia, que se localiza a 17 Quadras do prédio do Capitólio Americano. Foi um encontro do destino para uma história verdadeira ser contada. Ao jogar basquete, conheceu Smurf, um dos jovens Sanfords (com 15 anos) que estava acompanhado de Emmanuel, o irmão mais novo (9 anos). Dali começou uma conexão entre eles, um voto de abertura e confiança, situação na qual uma criança como Emmanuel gostou da câmera e pediu para ficar um pouco com ela, explorá-la, gravar a vizinhança.
Em entrevista o diretor relembra os primeiros passos do longa: "Emmanuel compartilhou a filmagem que ele e seus irmãos começaram a coletar - absorventemente crua e íntima, momentos familiares e vislumbres intrigantes de personagens da vizinhança. Às vezes, virei a câmera e entrevistei Emmanuel; às vezes eu virei de volta para ele me entrevistar".
Esse encontro cotidiano, espontâneo, descontraído, aberto ao outro, possibilitou o começo de uma narrativa que, na maioria das vezes, é esquecida e silenciada pelo sistema opressivo. Felizmente, o cineasta estava aberto a essa história de afetos, que mostra um círculo familiar cheio de problemas comuns nas famílias vulneráveis, mas, acima de tudo, são pessoas unidas pelo amor, pela coragem e aceitação. São pessoas que tentam sobreviver a qualquer custo, mesmo quando erram. Entre eles, são filmados Emmanuel, o jovem estudioso e com o sonho de ser bombeiro; Smurf, o irmão que está no tráfico de drogas local; Denice, a única filha, aspirante a policial; e Cheryl, uma mãe amorosa que tem o desafio de superar seus próprios vícios e manter a família unida, com alguma esperança.
É uma história de batalhas pessoais e sociais, não apenas nos Estados Unidos, mas em várias regiões do mundo, principalmente no Brasil. É uma família que se confronta com falta de perspectivas, segurança e bem estar, com sonhos inacabados, com miséria, desemprego, violência e tragédias. É uma história que, em duas décadas de concepção, produção, desenvolvimento e finalização, continua fazendo muito sentido para o drama social contemporâneo e realista, um drama que extermina famílias negras e pobres, as mais atingidas pelo racismo estrutural e a violência sistêmica e contínua. É uma história universal que encontrará empatia em muitos lugares.
Destaca-se por ser um documentário bastante intimista, verdadeiro, atual. Com cenas fortes, que vão desde situações nos quais há o consumo e tráfico de drogas, como também imagens que trazem esperança como o sonho do bombeiro, o sorriso e olhar de uma criança, o abraço de perdão e aceitação entre uma família, absolutamente, há um percurso dramático, revelador e encorajador nesse longa-metragem. Além do mais, é um trabalho jornalístico e documental de primeira grandeza, tanto no aspecto de humanização do registro, como também em dar voz às narrativas que são silenciadas. O cineasta conseguiu criar um documentário bem pessoal, porém, que não se afasta das lutas sociais e coletivas.
Nesse aspecto de construção da narrativa, Davy Rothbart e equipe foram bem articulados. Ao mesmo tempo que o cineasta utiliza muito bem os arquivos familiares, os espaços da casa e das ruas, os close-ups e planos mais fechados que conectam os Sanfords a testemunhar seus sentimentos, preocupações e sonhos, ele também consegue uma narrativa que dá conta de como os Estados Unidos foi construído: com exclusão, racismo, violência e miséria.
Posto isso, o documentário mostra claramente a construção de uma nação na qual nem sempre a liberdade, a democracia e a justiça ocorrem. São situações sociais vulneráveis ali que não ofereceram saída imediata a quem vive em uma família com tantos problemas. Nesse sentido, um dos fatores que dão um "clímax" no próprio documentário, um ápice climático de natureza bastante incômoda, socialmente dramática e fruto de uma violência institucionalizada através da pobreza, é quando ocorre uma tragédia na família. Esse momento é bastante doloroso porque ele fragiliza a família, mas também, mais adiante, o luto a ajudará na superação.
Embora tenha sido uma fatalidade do destino durante a filmagem, foi a partir dessa tragédia que Cheryl deu abertura para filmarem a dilacerante dor que a família dela estava vivendo. De certa forma, foi um grito por socorro, um ato corajoso e revelador da violência nas periferias e do descaso com a população negra, principalmente com os jovens e adultos negros que, segundo estatísticas, são os que mais morrem por arma de fogo. O cineasta aponta que ela (Cheryl) disse que "tantas pessoas são mortas por armas na vizinhança, mas nenhuma delas teve as vidas documentadas como a minha família". E ele complementa: "no meio da dor dela, Cheryl teve a sabedoria e perspectiva para entender o valor e a importância que a história de sua família poderia um dia ter".
Com tanta lucidez narrativa, 17 Quadras é um documentário essencial e altamente recomendado. Em um mundo arcaico disfarçado como "moderno", qual o autoritarismo, a violação de direitos e o racismo tentam destruir a diversidade e liberdade de expressões, de pertencer e ser cidadão, esse longa-metragem une o amor e a dor que estão permeados em toda a realidade do filme, assim, mostrando que, os Sanfords têm falhas e acertos como todos, mas souberam, aceitar essas lutas e superá-las de alguma forma.
"A história dos Sanfords, para mim, não é apenas um urgente choro por mudança, mas também um poderoso e inspirador conto de amor, perda, luta, coragem, resiliência e redenção. Mais do que tudo, 17 Quadras é uma história de amor - uma família lutando contra o coração partido para descobrir os laços que os unem(....) nossa esperança é que qualquer um que assista ao filme sinta um chamado para fazer o mundo um local melhor para viver para nossos mais vulneráveis cidadãos - lutar para nossas comunidades mais violentas ficarem seguras, procurar novas maneiras de engajar as pessoas que vivem lá - cultivar conexões, fazer amizades, descobrir um sentido compartilhado de propósito, e despertar criatividade e um sentimento de encantamento. Se nós queremos um mundo mudado, cabe a nós fazer isso acontecer". (Davy Rothbart)
Fotos: Uma cortesia Reprodução Mostra SP via assessoria de imprensa do evento.
Trechos da entrevista de Davy Rothbart, via press book do longa-metragem, disponível para imprensa credenciada. Direitos garantidos. Tradução livre para português, por Cristiane Costa, crítica de Cinema MaDame Lumière, especialmente para essa publicação.
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