Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Novo longa-metragem de Justin Kurzel, baseado em romance homônimo de Peter Carey, A Verdadeira História de Ned Kelly (True History of the Kelly Gang, 2019) apresenta a jornada mítica em torno da figura de Ned Kelly, conhecido como um fora da lei na tradição Australiana. Interpretado por dois atores que se destacam, Orlando Schwerdt (Jovem Ned) e George MacKay, na fase jovem adulta, a história conta com elenco crível e atrativo, entre eles Charlie Hunnam, Russell Crowe, Nicholas Hoult e Essie Davis.
Na tradição mítica a respeito do herói e anti-herói, essas figuras se opõem mas também se aproximam a depender do enredo, contextos e tensão entre eles, sendo assim, o filme introduz o público a essas fronteiras entre Ned Kelly ser um homem destinado a ser um herói e um líder representante dos povos ancestrais da Australia contra a soberania e autoritarismo Britânico, ou simplesmente um jovem criado em um ambiente violento e desprovido de reconhecimento passando, assim, à figura de um bandido mítico.
Ambientado na Austrália no século XIX, o jovem vive em extrema pobreza com os pais e irmãos, descendentes de Irlandeses, e são considerados degradados, sem nenhum valor significativo. A polícia colonial representada por Charlie Hunnam, inicialmente, já demonstra a opressão sob a família Kelly, humilhando Ellen Kelly, a mãe do jovem, para a qual paga por sexo.O pai de Ned, conhecido por ser um ladrão de porcos e perseguido pela polícia, está alheio às responsabilidades e sem prestígio com a família. O retrato familiar de Ned Kelly é severamente disfuncional e trágico. Desde muito cedo, ele tinha que amadurecer.
O roteiro consegue ilustrar bem essa ambiguidade em torno da lenda Ned Kelly: potente para ser um líder ou mais um degredado, perdido em si? Através da relação próxima e afetuosa com a mãe, muito bem interpretada por Essie Davis (de Game of Thrones e O Babadook), o jovem é incentivado a se tornar "homem". Na tradição, e diante da opressão dos Ingleses, ser "homem" seria personificar o simbólico líder na prática, o homem capaz de ser temido, amado, odiado; o homem que deveria enfrentar a polícia e demais opressores, obter bens materiais, proteger a família, garantir o respeito da comunidade, ser a representação do temor, da coragem e do heroísmo.
Desse modo, um dos aspectos interessantes dessa realização de Justin Kurzel diz respeito a conseguir, com um grande apoio do excelente elenco, mostrar essa construção mítica de Ned Kelly a partir de uma narrativa de embate entre os Kellys e a polícia colonial, mas também, apresentando a vulnerabilidade desse mito. Em diversos momentos, tanto como criança quanto como jovem, Ned Kelly enfrenta seus medos, inseguranças, afetos, escolhas, entre outros, transitando entre a ingenuidade e a violência. Ele personifica o garoto em formação, cobrado para ser "homem", no qual os outros personagens colocam algumas expectativas.
Nesse sentido, alguns personagens são imprescindíveis no roteiro para desafiar Ned Kelly a amadurecer e/ou confrontar situações limite e conflitos. Entre elas estão o fora da lei Harry Power (Russell Crowe), o desonesto policial Constable Fitzpatrick (Nicholas Hoult) e a mãe de Ned. Todos eles, em maior grau, colocam-no em situações dramáticas, nas quais ele tem que tomar decisões. Vale mencionar que o personagem Fitzpatrick não tem escrúpulos, destacando-se como um antagonista de Ned Kelly. Enquanto o Sargento O´Neil (Charlie Hunnam) era um tolo com farda e tinha um pouco mais de carater, Fitzpatrick era daqueles capazes de se aproximar dos Kellys para, depois, persegui-los e golpeá-los com força e violência.
Dessa vez, Justin Kurzel apresenta uma direção um pouco mais sólida considerando todas as categorias constitutivas do longa, possibilitando entrar mais na direção, tendo em vista o tripé dramático narrativo do filme: biográfico, histórico e trágico. Como consequência, um trabalho mais equilibrado na direção. Normalmente, em seus filmes como Macbeth: Ambição e Guerra (2015) e Assassin's Creed (2016), o cineasta demonstrou uma maior ênfase em aspectos técnicos como o visual realista, a movimentação da câmera lenta, e a estética contemporânea na fotografia e iluminação.
Em Ned Kelly, apesar do clímax imageticamente mais cool, estiloso e sangrento, com forte uso de trilha sonora, explorando esse apreço que Justin Kurzel tem por cenas de batalhas, o que faz a diferença na história é a luta pessoal do protagonista, uma luta por compreensão de si mesmo, uma luta por pertencimento e um lugar no mundo, uma luta por reconhecimento coletivo. Herói ou vilão? Sempre dependerá da perspectiva, história e contexto, afinal, também há vilões de farda,de paletós e togas.
Talvez isso explique porque há heróis que usam vestidos.
(3,5)
Fotos: uma cortesia A2 filmes, reprodução lançamento via assessoria do filme.
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