Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Um documentário é capaz de dar conta da filmografia de um diretor como Stanley Kubrick, reconhecido por ser um cineasta genial e completo em todo o processo cinematográfico ? Com um bom recorte e uma grande admiração por ele, certamente, sim. É o que ocorre em Kubrick por Kubrick (2020), de Gregory Monro, que percorre a obra do diretor de uma forma objetiva e consistente, mas também igualmente apaixonante e cinéfila. O documentarista não entrega diversos detalhes biográficos, o que representa um ótimo acerto ao despertar o interesse por saber mais sobre o visionário diretor.
Gregory Monro
Partindo de uma entrevista rara concedida pelo diretor ao Francês Michel Ciment, crítico de cinema com ampla experiência e autor do livro Conversas com Kubrick (Cosac Naify, 2013), o documentário se desdobra em uma organizada entrevista no qual, entre depoimentos de Kubrick, Gregory Monro intercala a filmografia com imagens de grandes clássicos como Barry Lindon, Laranja Mecânica, 2001: Uma odisséia no espaço, O iluminado, entre outros. Há um percurso bem esquematizado na apresentação das obras e experiências do cineasta, assim como fragmentos de arquivos com entrevistas de atores e atrizes como Malcolm McDowell, Jack Nicholson, Shelley Duvall.
Na sua estrutura organizada, o documentário tem uma clara síntese na qual, qualitativamente, também oferece um bom panorama da cinematografia, entretanto, o agradável sabor da descoberta e da contemplação de Kubrick por Kubrick, está na sua objetividade, honestidade e naturalidade. Como o título menciona, é a visão de Kubrick transbordada na tela. É ele falando de si. Nesse sentido, o longa reserva esse espaço de intimidade ao espectador por exatos 73 minutos, nos quais, o diretor não esconde sua forma de pensar e fazer Cinema, e muito menos os conflitos nos sets dada sua exigência técnica e exaustivas tomadas. Em momentos reveladores, ele reconhece que o processo de pensamentos dele é difícil de definir.
Crescido no Bronx, ganhou de seu pai a sua primeira câmera
Conhecido por ser um cineasta privado, não adepto a dar entrevistas, ele tinha confiança em Michel Cimment, desse modo, as conversas fluem com muita consistência, iluminando o porquê o diretor prezava pela qualidade, perfeccionismo, experimentação e adaptação de obras sob uma perspectiva pessoal que lhe são bem próprias. "Sempre me senti atraído por algo que proporciona possibilidades visuais importantes, mas esse não é único motivo. Parte do problema de qualquer história é fazer você acreditar no que está vendo, obter uma atmosfera realista", comenta.
No prefácio de Conversas com Kubrick, o grande mestre Martin Scorsese, confesso admirador do cineasta, diz algo que traduz muito o que representa o legado Kubrickiano: "Assistir a um filme de Kubrick é como ver o cume de uma montanha a partir do vale. Nós nos perguntamos como alguém pôde subir tão alto. Há em seus filmes trechos, imagens e espaços carregados de emoção que têm uma potência inexplicável, uma força magnética que nos aspira lenta e misteriosamente: o itinerário de menino percorrendo os intermináveis corredores do hotel em seus velocípede em O Iluminado; o silêncio monumental do vazio sideral em 2001: Uma Odisséia no Espaço; o ritmo inumano da primeira metade de Nascido para Matar, que vai num crescendo até sua resolução lógica e sangrenta..." (p.20)
Com o mesmo espírito, o documentário abre algumas fronteiras para a compreensão do gênio. Mesmo com sua objetividade, o longa abre esse discurso de exploração da filmografia do diretor, sua relação com o fotojornalismo e a importância da iluminação, as aproximações de suas obras com outras linguagens artísticas, a competência de ser um autodidata e um investigador de obras ficcionais, a habilidade de controlar e dominar todas as fases de suas produções, os desafios de orquestrar tantos recursos e relacionar-se com as pessoas.
"Dirigir um filme não é sempre divertido porque você está num conflito com as pessoas. Há bastante tensão em todos"
(Stanley Kubrick)
Nesse sentido, o documentário permite espaços para reflexão pessoal do espectador sobre a realização de verdadeiras obras primas. A medida que Kubrick reconhece que nem tudo é explicável, e outros profissionais desabafam que não era fácil trabalhar com o cineasta, o público pode ter algumas impressões e insights e se interessar pela pesquisa de sua filmografia. Em um dos momentos mais sinceros (e de certa forma, tragicômico), o ator Sterling Hayden, que trabalhou com Kubrick em Dr. Fantástico, revela que teve que realizar 38 tomadas. Leonard Rosenman, compositor de Barry Lindon, se submeteu a 105 tomadas. Essa intimidade levemente crua, contrastando com a seriedade Kubrickiana, possibilita compreender que, por trás de grandiosos filmes e de toda a genialidade que os cerca há muitos conflitos registrados na História do Cinema. "38 tomadas. Doloroso e constrangedor", confessa Hayden.
De fato, Stanley Kubrick nunca foi fácil de compreender e, pela biografia, nem de lidar com. Ele detinha bastante controle sob recursos cinematográficos como equipamentos, orçamentos e cronogramas, assim como era obstinado em buscar expressar o realismo na ficção. É um mestre moderno e único, capaz de trazer novas configurações e sentidos ao seu Cinema, explorando de forma múltipla diferentes temas, contextos, associações e simbolismos. Inquestionavelmente, é um diretor, cuja obra cinematográfica, exige variadas leituras e releituras, dada que sua riqueza narrativa possibilita extrapolar os limites dos dramas humanos, do fantástico, do horror, da sociedade, da modernidade.
Kubrick por Kubrick é mais um bel-prazer na seara de documentários especiais sobre diretores. É um filme mais objetivo e convencional que não trará todas as respostas e encantamentos sobre o diretor (e, sinceramente, nem é preciso). Espera-se que o espectador possa enxergar que, nessa objetividade, reside um reflexo do estilo Kubrickiano de ser. Ele simplesmente concedeu uma entrevista a Michel Ciment, e sua filmografia falará por si mesma quando explorada. É um mestre que permite que o espectador construa seus próprios sentidos a partir das vastas experimentações de como ver e sentir Cinema.
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