Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Há filmes que são incomuns exercícios de experimentação, nos quais o(a) diretor(a) assume muito mais o risco de como sua obra terá a recepção da crítica e do público em geral. Apegar-se à certa inconvencionalidade na produção de Cinema traz outras responsabilidades maiores, entre as quais, ser melhor compreendido, deixar claro o que tem a dizer e conectar-se verdadeiramente com o público. Como consequência, um dos grandes riscos é esvaziar o desenvolvimento da narrativa, deixando muitas lacunas no storytelling. O Tremor (The Tremor, 2020), longa-metragem de estreia de Balaji Vembu Chelli presente na Competição de Novos Diretores da Mostra SP se localiza exatamente nessa categoria de filmes.
A ideia central dessa narrativa é uma combinação de fotojornalismo, desastre natural, fatos, fake news e sensacionalismo. Uma mistura sedutora, controversa e moderna em uma sociedade que sofre uma crise do jornalismo, da democracia e do trabalho investigativo frente ao crescimento das notícias falsas. Desse modo, ao assistir a esse longa , o publico terá um material experimental sobre as fronteiras entre a realidade e as fake news, mas também terá um material que pouco acrescenta em termos de construção da narrativa e desdobramento dos fatos. Infelizmente, não é um filme tão engajador durante a projeção, e o que mantêm a atenção é a curiosidade e o mistério.
É uma produção que exige flexibilidade do público ao assistir porque, basicamente, o fotojornalista interpretado por Rajeev Anand circula em vilas do interior da Índia após saber que houve um terremoto na região. É um movimento de busca por informações sobre a tragédia, cercado por regiões montanhosas e uma neblina densa. A princípio, seu interesse é profissional, afinal, essa é a oportunidade de ter a primeira grande matéria de sua carreira, porém, mais adiante, pouca competência como fotojornalista é demonstrada. Ele começa a circular com esse carro sem nenhum senso de direção, estratégia ou de planejamento, a realizar perguntas aos moradores que ou fingem que não sabem ou desconhecem qualquer evidência de terremoto.
Toda essa forma de desenvolver o filme provoca um mistério, trazendo elementos como o fantasmagórico, inclusive imageticamente considerando a densa neblina nas montanhas, e os limites entre o real e a ficção, a verdade e a mentira, o saber e o desconhecimento. Em uma das primeiras sequências, o fotojornalista vê claramente imagens da tragédia como árvores caídas, carros afetados pelo desastre e um morto. Depois, tudo parece que foi uma ilusão à medida que os habitantes dizem que não sabem sobre nenhum terremoto.
É relativamente um filme bem curto, com duração de 71 minutos, questão que tem prós e contras. Um dos prós diz respeito à competência criativa do diretor de fotografia Vedaraman Sankaran de explorar a natureza e a pobreza da vila, construindo essa atmosfera de realidade mais terrena, com imagens de estradas de barro, montanhas, casas rústicas, árvores, animais, entre outros. Ele também aproveita bastante a luz natural e abusa da neblina, criando o contraponto do que pode ser irreal, ilusório.
Outro ponto favorável, embora também pode ser interpretado por alguns como algo arriscado, entediante e nada inventivo, diz respeito a Balaji Vembu Chelli optar por filmar o fotojornalista dirigindo, partindo do ponto de visão do ator. Assim, para ilustrar-lhes, há vários enquadramentos nos quais o público verá a estrada cheia de lama, o farol no escuro da noite, as encostas do matagal,as casas modestas e todo o campo de visão diante do carro. Esse procedimento parece não dizer nada, entretanto, considerando a abordagem da obra, podemos considerar que ele ajuda a reforçar o mistério, o desconhecido, o inesperado e a busca exaustiva por algo que não levará o fotojornalista a lugar algum. O personagem dirige por horas e todos continuam dizendo que não sabem de nenhum terremoto.
O trágico acontecimento nas primeiras sequências vai caindo no descrédito e no cômico. Por volta de 50 minutos de projeção, a entrada de trilha sonora com sonoridade chistosa, coopera para transformar o percurso em um elemento tragicômico. Verdadeiramente, é como se o fotojornalista fosse tratado como um tolo ao qual ninguém irá dizer absolutamente nada de significativo. Ele também já demonstra cansaço e desmotivação. Um dos grupos chega a dizer algo como "Acho que ele quer contar uma história diferente", refletindo um pouco do que pode ser a opinião pública.
Com isso, um dos contras da obra é chegar a um ponto que realmente o diretor não tem nada a dizer dentro da própria narrativa. E não é um problema de duração do longa já que há curtas que têm muito a dizer e conseguem ser bem orquestrados pela direção. Logo, a rica combinação de ideias do argumento transforma-se em apenas uma viagem de carro com algumas paradas.
Esse "dar voltas pouco criativo", que também representa um elemento de frustração ao fotojornalista torna-se um peso na experiência com o filme pois leva à seguinte indagação: "O que mais o diretor tem a dizer e como ele articula isso com qualidade narrativa"? De fato, o filme não engaja bem, porque tudo que o público verá está relacionado a nenhum ponto de convergência, profundidade ou circularidade dessas ideias. Fica claro que o fotojornalista realiza uma viagem solitária como um ser praticamente invisível e desacreditado,com isso, pouco é exigido do ator Rajeev Anand.
Apesar que nem todo o filme precisa ter um (forte) antagonista, nota-se aqui que quase não se fala sobre governo, empresas, instituições em geral. A não presença deles têm algo a dizer apenas no imaginário e inferências do espectador, como o descaso, a miséria, a pobreza. Essa característica acaba por criar um mundo bem paralelo que não é tão verossímil. Elas não integram a parte cênica e, apenas brevemente, a figura do empreiteiro da região é citada. Essa escolha por não apresentar antagonistas físicos, somente um desastre natural, também traz outras consequências para a narrativa, como por exemplo, o protagonista não tem contra quem argumentar ou lutar. Ele fica bastante isolado para problematizar qualquer questão. Seu trabalho investigativo simplesmente não avança.
Na maioria das vezes, inovar no storytelling não quer dizer jogar toda a responsabilidade da narrativa para o entendimento e abstração do público. O (a) diretor(a) precisa construir o filme, seja com o apoio mais estruturado de um roteiro, seja realizando um esforço metalinguístico de pensar como fazer Cinema com tomadas de decisão mais experimentais, clássicas ou híbridas. Escolhas como a de Balaji Vembu Chelli, são delicadas pois elas implicam ter claro qual é a co-responsabilidade do diretor e equipe na experiência do público com o filme. Nesse caso, ele deixa a desejar nesse aspecto. Tendo em vista todas as questões levantadas, O Tremor tem um argumento com bastante potencial, porém, é um filme ame ou odeie, também com espaço para a indiferença do espectador.
Fotos: uma cortesia Reprodução Mostra SP via assessoria de imprensa do evento.
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