Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Ficções científicas que percorrem a relação entre humanidade e tecnologia, entre ser humano e androide exigem um considerável tato do(a) diretor (a) e do(s) roteirista(s) para transmitir as percepções, ideias e sentimentos sobre a humanização da máquina e a desumanização do homem. Logo, não é uma missão fácil escrever e dirigir esse tipo de ficção, principalmente, quando ainda não se tem experiência com o gênero e com outras cinematografias na carreira.
A jovem cineasta Sandra Wollner e o co-roteirista Roderick Warich, através de O Problema de Nascer (do original alemão Die Last geboren zu sein, 2020), tentam construir essa narrativa sobre uma androide e seus fantasmas, e o resultado não é muito bom. Diferente de roteiristas como Alex Garland, que escreveu ficções como a adaptação de Não me abandone jamais (Never let me go, 2010), o horror sci-fi O Extermínio (28 days later, 2002) e fez uma excepcional estreia como diretor-roteirista em Ex-Machina: Instinto Artificial (Ex Machina, 2014), a cineasta deixa a desejar aqui (ainda que tenha ganhado o Prêmio Especial do Júri da seção Encontros no Festival de Berlim).
Elli (Lena Watson) é uma androide bem jovem, uma criança, pelo menos, na aparência física. Vive com um homem (Dominik Warta) que ela chama de Pai. Mais reclusa em casa e mergulhada em memórias e fantasmas, Elli desfruta o tempo com ele com banhos de piscina e alguns breves momentos rotineiros, à noite, ele a coloca na cama, em outros momentos, ela caminha pela floresta escura. Mais adiante, Elli está na casa de uma senhora idosa interpretada pela atriz Ingrid Burkhard.
A ideia de enfocar uma androide bem jovem , suas memórias e fantasmas, além do drama da máquina que pouco ou nada representa para os humanos em cena é bem intrigante e contemporânea, em especial, quando percebe-se que o ser humano tenta suprir suas carências e memórias afetivas através de outros recursos como a própria tecnologia. Lamentavelmente, a boa ideia dos realizadores vai se materializando de forma problemática durante a execução da narrativa.
No primeiro ato, Elli tem uma relação bem estranha, em outras palavras, desconfortável com quem chama de Pai. O fato de usar a imagem de uma criança como androide a colocando em cenas de intimidade insinuantes que levam a crer que há uma proximidade amorosa / sexual com o homem em cena é bastante complicada. Isso ocorre não apenas pela sugestão de pedofilia, mas pelo fato de que não é compreensível e justificável o porquê a diretora realizou esse tipo de apelo e o quão isso tem algo a dizer. Talvez a carência de Eli? O campo dos afetos e humanização da máquina? As memórias do homem? A solidão? Alguma relação abusiva do pai?
Mesmo assim, foi uma decisão que não choca e nem conta nada de realmente significativo, assumindo muito mais uma posição de incomodar gratuitamente. Na teoria e prática do Cinema, o cineasta toma decisões na decupagem do roteiro, ou seja, há liberdade criativa e artística na função do diretor. Ele é um contador de histórias, um articulador de narrativas e suas relações entre a imagem, o discurso, a história, a sociedade, a existência, entre múltiplos olhares. O que ocorre no filme no primeiro ato é um pouco repulsivo porque apenas insinua algo que não agrega muito à história.
No transcorrer entre segundo e terceiro atos, o filme é bastante lento na execução, o que exige uma boa dose de paciência e flexibilidade para não deixar a experiência do primeiro ato influenciar negativamente a análise da obra. De maneira ampla, a partir de metade do longa, a direção conseguiu transmitir um pouco mais essa relação vazia de Elli com os humanos.
Nos planos nos quais ela aparece com a idosa senhora, agora com aparência de menino, é perceptível o quanto ela é inadequada e não valorizada naqueles contextos e com aquelas pessoas. Ainda que ela esteja fisicamente ali e represente a possibilidade dos seres humanos vivenciarem memórias, ela lida com questões como solidão, não-aceitação e desumanização. Em uma das cenas mais dramáticas, realizada no estacionamento de um estabelecimento, é possível sentir na pele o drama de Elli.
Posteriormente, a narrativa pouco evoluí para um clímax ou significativo acontecimento, tendo como destaque apenas o desenho e edição do som que, aliás, agrega boa qualidade técnica às tomadas externas na floresta e estradas. Em termos de enquadramentos, fotografia e movimentos de câmeras em geral, certamente, o filme cria uma atmosfera de suspense e estranhamento, porém ainda carece de uma melhor articulação entre direção e desenvolvimento de roteiro.
Por fim, a respeito da relação ser humano x androide, o longa dá sinais dessa fragilidade que diz muito sobre como a sociedade contemporânea funciona. Desse modo, para aproveitar algo do filme, é preciso observar como, de maneira geral, a relação entre Elli e os outros personagens é desprovida de conteúdo e afetos. Isso mostra que o ser humano está cada vez mais desumanizado, e tem desafios para lidar com a máquina, com o outro e também consigo.
Fotos: uma cortesia Reprodução Mostra via assessoria de imprensa do evento
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