Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Com tantos filmes que abordam a guerra e a trajetória de soldados em meio à violência, solidão, perdas e traumas, Mosquito (2020), uma co-produção de Portugal, Brasil e França com direção de João Nuno Pinto, tem um excelente recorte narrativo que combina drama de guerra, rito de amadurecimento e biografia em ficção. Segundo seu realizador, a história é inspirada em seu avô, soldado enviado à Moçambique na guerra.
É valioso reconhecer que esse filme é um bom trabalho coletivo com característica bi-nacional nas relações Brasil e Portugal, começando pelo roteiro assinado por Fernanda Polacow e Gonçalo Waddington, além do diretor ser um profissional que fica na ponte Lisboa - São Paulo. Eles trabalham muito bem a questão da trajetória de Zacarias (João Nunes Monteiro), um jovem soldado Português que, como todo adolescente, sonha em viver grandes aventuras e se alista no exército. Ao partir para a guerra em Moçambique, ele contrai malária e é abandonado pelo pelotão. Deixado para trás, ele toma contato com o povo e cultura Africanos, em uma jornada de descobertas, rituais e amadurecimento. Confrontado por alucinações de desertores, animais selvagens e colonos, Zacarias luta pela sobrevivência e pelo encontro do caminho de volta.
No começo, como evidência de sua educação colonialista e racista, o jovem soldado se esforça para agradar e/ou aprender com os mais velhos, demonstrando o desejo pelo front de batalha. A presença do Sargento Justino (João Lagarto), seu superior, é do homem autoritário, asqueroso, racista e violador de mulheres negras. Em uma de suas falas mais repugnantes, ele diz que Zacarias há de conhecer uma "selva negra", no sentido abusivo de dominar sexualmente uma Africana. Mais adiante, questões étnico-raciais e de gênero também aparecem na tela, como a relação dos soldados portugueses com os homens e mulheres negros.
Quando Zacarias é abandonado pelo próprio sangue português, ele sentirá na pele o que é ser deixado para trás. Essa é uma oportunidade de conhecer a África e ter contato com povos nômades e suas culturas ancestrais. Também é quando se dará seu contato com as mulheres Africanas que representam força, liderança e cura em suas tribos. De certa forma, esse é um processo de cura física e amadurecimento para o jovem em meio à solidão de estar perdido na selva.
Assim, o roteiro chama a atenção pela sua competência entre unir e articular a falsa promessa de guerras grandiosas com a ideia de colocar o soldado em contato com a cultura regional dos colonizados, como um rito de passagem no desconhecido, com acesso a eventos ritualísticos que são bastante simbólicos na representação da história.
As cenas nas quais Zacarias interage com superiores e outros soldados portugueses mostram os absurdos da guerra e do imperialismo desmedido e os egos gigantes presentes na batalha, em especial no comportamento dos que comandam. Escancara um nacionalismo mais voltado ao orgulho pessoal, da patente e em uma política higienista de opressão e extermínio étnico-racial e social do que propriamente uma valorização de Portugal como um coletivo e nação.
Com uma direção competente, o longa consegue conciliar beleza e horror em uma excelente fotografia, além de colocar o personagem em situações realistas ou alucinatórias bem relevantes para transmitir alguns discursos sociais, políticos, existenciais. O forte uso de metáforas e a alternâncias desses opostos criam uma narrativa que vai na contra mão do "mais do mesmo" que há em determinados filmes sobre guerras. Aqui, através de um recorte temporal em 1917, o diretor consegue anunciar como homens frutos do Imperialismo foram construídos no transcorrer da História.
Por outro lado, assim como há alucinações na história, também há alguns estranhamentos na experiência com o filme. Por mais que seja um personagem em um percurso complexo e importante para contar sobre o Nacionalismo e Imperialismo que impactou tantos jovens soldados, é difícil conectar-se emocionalmente com esse personagem central. Quando ele começa a ficar mais próximo da cultura Africana e, logo, mais interessante, ele tem que retornar e há uma quebra de conexão com ele. Estranhamente, Zacarias está ali, por inteiro, mas não comove, não permanece na memória afetiva. Nisso reside uma das interessantes contradições do longa.
Fotos: uma cortesia Reprodução Mostra SP via assessoria do evento.
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