"Tempos de paz é um tempo que todos esperam. Seria hoje uma frase de John Lennon. A história é de guerra e as guerras continuam existindo."
(Daniel Filho, diretor de Tempos de Paz)
Antes de encerrar 2009, selecionei um filme que me chamou à atenção desde o trailer como se meu coração urgisse por um tempo de paz a mim mesma, o filme era Tempo de Paz, baseado na peça "Novas Diretrizes em Tempos de Paz" de Bosco Brasil, dirigido por Daniel Filho e performado por dois grandes atores brasileiros: Tony Ramos, ao qual eu tenho um imenso respeito e desejaria vê-lo brilhando em outros palcos mais além das lentes da TV Globo e Dan Stulbach, ainda jovem e muito talentoso pelo qual também tenho grande apreço, em especial agora, após uma performance catalisadora de meus próprios sentimentos divididos pelo bem e pelo mal e sempre sensíveis à Arte que se serve da própria metalinguagem de tantas outras Artes. Aqui, o Teatro e o Cinema e, por que não, um pouco da Poesia que não pode se perder dentro de mim?
Nesta produção, Dan Stulbach é um polônes, ex-ator de teatro de nome Clausewitz que fugido da segunda guerra mundial vem ao Brasil para tentar uma nova vida afinal "o Brasil precisa de braços para a lavoura". Ele se nomeia como um "agricultor" mas ao chegar à alfândega é confudido com um nazista e terá que passar por um interrogatório na imigração da alfândega do Rio de Janeiro para que seja aferida esta suspeita. Tony Ramos é o interrogador Segismundo, o frio e ferido ex-torturador da polícia política da Ditatura Getulista que, apadrinhado por um homem inescrupuloso, fez as maiores atrocidades possíveis que um torturador político pode fazer sob ordens ditatoriais, sem qualquer arrependimento, relatos que ele confessará no transcorrer do filme. Agora, nos "tempos de paz" ele se encontra encostado na imigração pelo próprio padrinho que, a princípio, não está preocupado se Segismundo sofrerá as retaliações de ex-presos políticos que torturou e que agora se encontram livres para poderem se vingar ou não. No roteiro, enquanto as "novas diretrizes para os tempos de paz" não são oficiais, Segismundo é a própria lei, pelo menos, diante de Clausewitz que não obterá a permanência no Brasil se não enfrentar o tetê a tetê com o ex-torturador. Segismundo não facilitará a entrada de Clausewitz no país pois não consegue ver um só calo de enxada nas mãos dele e muito menos entender como um agricultor aprendeu a língua portuguesa de forma autodidata. Cabe a Clausewitz com seu otimismo, doçura e simpatia , tão contrastantes com o obediente coração amargurado de Segismundo reverter a situação, com suas tristes vivências e, principalmente, sua magnífica sobrevivente Arte.
O roteiro é bem objetivo, perfeitamente bem elaborado para atender a emotividade do final do filme e tem seu ponto de apoio em um cenário enxuto pois tudo girará em torno da sala de interrogatório, embriagada por confissões, memórias, pedidos e uma inquestionável intimidade de dois opostos que tanto se aproximam e que me sensibilizam à flor da pele de uma forma inesperada. Clausewitz perdeu sua vida estando vivo pois a esposa, a família, os amigos e, em partes, sua ARTE teatral foram destruídos pela guerra, logo obter seu visto de entrada e permanência no país tem um significado simbólico e também real que é como dar-lhe uma nova vida, tirando-o dos escombros de uma morte-vida para uma vida-vida. Ele, de certa forma e mesmo em meio às ruínas psicológicas da guerra, ainda ressuscitava ao se dedicar aos estudos do português, ao procurar uma nova profissão (ainda que sem prática) para labutar dentro de uma nova pátria, ao entrar em um navio rumo ao Brasil e enfrentar docilmente, espontaneamente e, com firmeza, um homem rude como Segismundo.
Por outro lado, Segismundo não é só o lado negro do maquineísmo e da máquina política que devastou vidas, torturando-as e matando-as gratuitamente, Segismundo é um pobre cão pago para obedecer sem dar espaço a questionamentos e, nisto, reside a sua morte-vida, sua tragédia e a catarse que me obriga a ter uma certa piedade e a compreendê-lo dentro deste enredo como uma vítima do próprio contexto amargo da Ditadura. Infelizmente, ele tem uma morte disfarçada de vida desde a infância, na qual foi criado em um orfanato e só servia para quebrar os pescoços das galinhas. Ele não aprendeu a amar e muito menos a abrir seus olhos ao sensível, ele aprendeu sim a odiar e fazer o serviço sujo sob o risco de ser morto por desobediência. Ele era um bruto infeliz que foi usado a favor dos interesses de uma polícia política persecutória e violenta. Ele só aprendeu a torturar e obedecer, sem direito a discernir o certo e o errado, por isso ele acabou quebrando os ossos das mãos do médico e ex-preso político (Daniel Filho) que havia salvado a vida de sua querida irmã (Louise Cardoso) . Irônico, não? Agora o médico o procura. Um clássico exemplo como Segismundo não foi condicionado nem mesmo para ter gratidão e muito menos para ter paz. Quem seria capaz de despertar em Segismundo um pouco de lágrimas e beleza em meio à uma alma doente e calejada? Somente um artista como Clausewitz. A Arte pode curar e ela me cura todos os dias.
Após a cena de teatro performada pelo ex-ator, de um caráter sublime e elevadíssimo em sensibilidade para completar a magnitude do roteiro, o filme me emocionou muito a ponto de lágrimas implacavelmente não serem contidas. Não fiz questão de segurá-las, elas tinham que escorrer face adentro, molharem meus lábios e serem bebidas como um cálice, o da Salvação. Elas tinham que molhar minha face como as do próprio Tony Ramos, no papel de Segismundo que, ironicamente, tinha sua alma tão suja deste mundo voraz que combinava com o seu nome. Por instantes, as minhas lágrimas também me lavaram com as que lavaram a de Segismundo e sorri com a emoção catártica impulsionada pelo fascínio do monológo teatral de Clausewitz em plena sala fria do interrogatório, aquecendo meu coração poeta. Afinal, também sou boa e sou má, sou legal e ilegal, sou amável e fria, sou obediente a regras e sou revolucionária, sou uma artista dual de coração oscilante entre o bem e o mal, assim me vejo nos dois personagens e aí está a grande lição do filme. Torturo a mim mesma como tantas pessoas torturam psicologicamente a si mesmas e a tantos outros e, na hesitação da vida, obedeço a formas estandarlizadas de agir, de se deixar manipular e que acabam por me deixar calejada como ao próprio Segismundo. Também choro a perda de uma pátria existencial nesta guerra coletiva que vivo, assim também me vejo perdendo minha Arte emotiva em um mundo insensível e devastado assim como o de Clausewitz. Estas condições me deixam morta, somente capaz de ser chamada à vida e à paz através da Arte.
Eu sempre penso e sonho com os tempos de Paz, a minha própria Paz para espalhar a Paz no tempo e no coração do Outro. Eu sonho em ser artista da Paz, artesã de novos corações, libertária de almas endurecidas.
Avaliação Madame Lumière
Resenha dedicada a todos os literatos como Otto Maria Carpeaux e Paulo Rónai que, durante os "tempos de paz" chegando ao Brasil, trouxeram seu talento para contribuir com a expansão da Literatura através de suas obras e traduções. Obrigada por fazerem parte dos meus estudos literários. Viver a Literatura como uma Arte e contribuir para que ela seja viva em nós, brasileiros, conterrâneos de sua nova pátria, seja talvez a única benção de um exílio. Salvando-se, vocês também me salvaram.
Título original: Tempos de Paz
Origem: Brasil
Gênero: Drama, Romance
Duração: 82 min
Diretor(a): Daniel Filho
Roteirista(s): Bosco Brasil
Elenco: Tony Ramos, Daniel Filho, Dan Stulbach, Louise Cardoso, Ailton Graça, Leonardo Thierry, Anselmo Vasconcelos, Maria Maya, Iafa Britz, Bernardo Jablonski, Felipe Martins, Camila Lins, Pablo Sanábio, Breno de Filippo, Ewa Maria Parszewska
Olha, confesso que não gostei tanto desse filme. Apesar de reconhecer a força dos atores. O próprio Daniel Filho disse que resolveu filmar a peça pq não achava justo que aquela energia de Dan e Tony morresse com o fim da temporada da peça. Havia a premência de imortalizar aquele momento...
ResponderExcluirBem, na minha avaliação, cinematograficamente falando, Tempos de paz é palco (olha a metalinguagem aí, rsrs) para dois atores em plena forma.Nada mais. Daniel Filho não vai além da contemplação. Reconheco, como vc frisou, as finas ironias (como o caso do ex-preso politíco e a irmã), mas não identifico aí grandes arroubos dramáticos. Contudo, sua leitura do filme é muito mais plena do que o próprio...
e isso não é puxasaquismo....rsrs
Bjs
Olá Reinaldo,
ResponderExcluirObrigada pelo honesto comentário. Confesso que minha leitura é mais plena porque eu fui além do que o filme oferece e centralizei minha emoção, principalmente, no monólogo teatral de Dan Stulbach e na idéia geral deste palco em tempos de paz, que não deixa de ser atemporal e dramático se elevado a um nível de como nós, enquanto sermos humanos também perdemos a nossa sensibilidade em tempos de guerra e, de fato, vivemos uma guerra e encontramos prazer nas belas manifestações da Arte como Prazer como fugir para um outro mundo, não doente.
Confesso que, sob a ótica da direção, não houve envolvimento de Daniel Filho, o filme é bem curto e sem grandes efeitos dramáticos nem espaço para outras ações, logo o filme não é uma obra prima cinematograficamente falando, ele se baseia neste diálogo e o que ele pode trazer de benéfico para uma reflexão de quem deseja refletir além e "olhar para dentro de si e do outro" como eu o fiz. Penso que o diálogo metalinguístico entre o cinema e o teatro,que também acaba embutido deste contexto histórico aflorado por alguns minutos de poesia é sublime e bem performado e conseguiu se imortalizar, pelo menos, em meu sensível e esperançoso coração cinéfilo.
Um super beijo da Madame!
Um outro filme que bebe dessa fonte metalinguística esboçada por nós aqui nos comentários, e é muito mais bem sucedido em todos os seus aspectos, é Closer. Já adianto que este é um dos filmes da década lá na lista que está sendo editada em Claquete.
ResponderExcluirQuanto a sua sensibilidade madame, ela continua a me cativar. Adoro descobrir seu olhar a cada filme e as imperiosas transferências que ele implica.
Bjs
Oi Reinaldo, bem lembrado e estou empolgada para ver seu comentário sobre Closer no Claquete. Este filme é um dos melhores sobre os dramas dos relacionamentos amorososos, sendo tênue na medida exata e não menos profundo.
ResponderExcluirQue comentário mais lindo sobre este processo de transferência entre nós! Guardarei-o em meu coração. Também me vejo muito em você e em suas palavras e agradeço a Deus por ter encontrado uma pessoa (independente de gostos cinéfilos) tão simpática e interessante na blogosfera. Verdadeiramente te adoro muito, um verdadeiro Monsieur digno de ser adorado por uma Madame!
Beijos cheios de gratidão!
Madame!
Diante das recentes notícias de revogação da lei de anistia, esse filme soa como uma voz a favor dos torturadores, demonstrando a sua "cega obediência" (na qual eu não acredito de todo), e oculta a crueldade dos mandantes desses crimes políticos.
ResponderExcluirAchei muito fraco o reencontro do torturador com o médico que salvou sua irmã, as mãos que curam, abatidas pela mão dos que torturam
E tudo isso aliado à qualidade da "globo" produções, ou seja, todos sabemos que a globo sempre foi a favor da ditadura e até hoje aliena os brasileiros da realidade crua do país.
Vejam os agradecimentos ao final do filme ao exército brasileiro.
Todos esses fatores me impediram de atribuir um olhar tão magnificente assim para o filme.
Talvez eu consiga triunfar o olhar quando produzirem "A guerra dos tamoios" de Aylton Quintiliano.
Olá, caro Diário
ResponderExcluirObrigada pela visita e pelo sua colaborativa visão pessoal sobre o Tempos de paz. Eu acredito que há várias formas de desenvolver um olhar sobre o filme e respeito sua opinião. A minha visão mais esplendorosa se baseia basicamente na performance teatral no que concerne a catalisar a emoção através da Arte, não só pelas lágrimas derramadas rapidamente por Segismundo, na verdade, não acho que ele se emocionou a ponto de mudar-se a si próprio, mas pela possibilidade de se curar através da Arte em um mundo desprovido de sensibilidade em vários momentos da nossa vida. À parte do meu recorte na resenha, o filme é curto e grosso e poderia ter um roteiro mais elaborado e um diretor presente.
Concordo que, olhando para a Globo sob o aspecto de uma instituição elitista, conservadora e manipuladora que, obviamente, seleciona o que vai ao "ar", ela não vai mostrar as atrocidades nuas e cruas da ditadura, não me surpreende que este não foi o foco do filme. Não seriam uma dúzia de palavras de Segismundo falando as atrocidades que ele já fez que denunciariam a real crueldade deste negro período histórico.
Grande abraço,
Madame Lumière
ola MaDame,
ResponderExcluirmuito bom poder ler e lembrar deste filme!
Onde encontro o texto declamado por Dan no filme...
Bjs
Ale
Olá Ale,
ResponderExcluirObrigada!
Sabe que eu não sei,rs! Vou procurá-lo e divulgo aqui no comments.
Abs!