Os irmãos Dardenne estão de volta com mais um drama social, Dois dias uma noite (Two days one night) , estrelado pela competente Marion Cotillard , um dos filmes indicados à Palma de Ouro no Festival de Cannes e vencedor do Grand Prix do ICS de Cannes. Os diretores são bem conhecidos e aclamados em Cannes e ganharam o mesmo prêmio com outra crônica dramática, o Garoto da Bicicleta (2011). Nesse novo filme, uma delicada temática sobre trabalho relacionada a conflitos de interesses, desemprego, depressão e diferentes escolhas está posta em jogo e confere ao drama um clima de incômodo geral na atual situação de Sandra (Cotillard), mãe de família e principal arrimo de casa. Após ter uma depressão severa, ela deseja voltar ao trabalho, porém o seu chefe opta por propor o seguinte: para ela voltar, terá que haver uma votação entre os colegas de trabalho no qual decidirão se preferem ganhar o bônus ou dispensar Sandra. Não é possível reintegrá-la ao quadro de funcionários e também dar bônus à equipe.
Essa escolha do roteiro é muito atual e pertinente para acender a pólvora da bomba das relações de trabalho na Europa. Ele tem a complexidade de colocar as pessoas em conflitos de interesses nevrálgicos, afinal todos precisam de dinheiro para sobreviver. Como sempre, os Dardenne sabem articular um argumento e uma direção muito realista, dramática e comovente sem cair na caricatura ou no exagero sentimental. Todo o roteiro se desenrola de uma maneira natural à medida que Sandra praticamente bate de porta em porta para influenciar os colegas a votar favoravelmente nela na segunda e última votação. Essa personagem tão vulnerável tem o desafio de abrir mão do seu orgulho e sentimento de humilhação e baixa autoestima, ainda que os sinta, além disso tem que lidar com suas recaídas diárias e dependência de antidepressivos para aguentar o peso psicológico da pressão. A situação dela é muito complicada e ela foi jogada na votação imposta pelo empregador: a de ser como uma réu a ser sentenciada, além do mais tem que lidar com um inimigo muito maior: o dinheiro no bolso dos colegas.
Na verdade, o longa detona uma profunda análise sobre o desemprego sem precisar detalhar uma narrativa com várias situações pois basta observar como os colegas de trabalho de Sandra reagem à problemática. Aqui está em jogo como o ser humano reage à um conflito de interesse e o dinheiro é um fator que pesa porque as pessoas gostam de dinheiro e precisam dele. Por outro lado, é enriquecedor perceber que haverá pessoas que serão solidárias, outras nem tanto e outras que realmente não podem abrir mão do bônus. O expectador testemunha essa jornada de Sandra e é inevitável não sentir na pele o drama da protagonista pois a realidade de um mercado de trabalho competitivo e que descarta pessoas sempre que necessário está aí para contar a história.
É um filme que merece ser assistido como um experimento social. É como um laboratório do cotidiano, na qual Marion tem uma grande responsabilidade de humanizar essa personagem e fazê-la lutar por um emprego da pior forma possível: seu emprego em troca de um bônus para terceiros, além disso ela tem que transmitir que está curada e é capaz de ter uma segunda chance. A problemática chega a ser inusitada e humilhante, porém na prática ela evoca que os empregadores também têm escolhas similares e realizam desligamentos ou movimentações de pessoal por questões que esbarram no financeiro. Eles são racionais e ponto. Até mesmo o expectador ficaria em dúvida se votaria favorável ou não à Sandra. É como se todos estivessem no mesmo barco e o empregador somente jogou a decisão final para terceiros.
Marion Cottilard realiza um trabalho de atuação consistente e maduro e é a prova de uma das melhores atrizes europeias para dramas contemporâneos. Seu trabalho é uma evolução da qualidade dramática que ela já apresentou em Ferrugem e Osso (2012) de Jacques Audiard. Visitar cada um dos colegas e lidar com agressividade, descaso, solidariedade e outros comportamentos foi o melhor desafio de seu personagem pois a atriz tinha que manter uma coerência entre a vulnerabilidade de Sandra e sua força de recomeçar a vida após episódios depressivos. Convém mencionar que, normalmente há um preconceito velado no mercado de trabalho (e entre colegas) sobre funcionários que sofreram problemas psiquiátricos e precisam dar continuidade às suas carreiras. Nem todos expressam isso mas ela existe porque a sociedade não está preparada para entender e lidar com a depressão. Nesse filme, isso não é tão visivelmente retratado mas é inferido em como Sandra tem que fazer valer que é a melhor opção, não por piedade mas porque é competente e é capaz de dar a volta por cima.
Com todo esse retrato do desemprego e da necessidade financeira das famílias na Europa, o longa se destaca entre uma das melhores produções contemporâneas sobre os efeitos colaterais da crise do trabalho e, portanto, mostra um Cinema Dardenniano engajado em crônicas sociais de qualidade sobre a condição humana.
Ficha técnica do filme ImDB Dois dias, uma noite
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