Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Em uma das páginas iniciais do best-seller de David Levithan, Todo Dia (Every Day, 2018), lançado essa semana nos Cinemas Brasileiros, o narrador, nomeado no filme como "A", descreve como se sente ao habitar o corpo de diferentes pessoas a cada 24 horas:
"Sou um andarilho e, por mais solitário que isso possa ser, também é uma tremenda libertação. Nunca vou me definir sob os mesmos critérios das outras pessoas. Nunca vou sentir a pressão dos amigos ou o fardo das expectativas dos pais. Posso considerar todo mundo parte de um todo, e me concentrar no todo, não nas partes. Aprendi a observar, muito melhor do que a maioria das pessoas faz. O passado não me ofusca, nem o futuro me motiva. Concentro-me no presente, porque é nele que estou destinado a viver."
Esse fragmento do livro ajuda a compreender o porquê se trata de uma historia adolescente que tem muito mais a acrescentar para a reflexão dos que estão fora desse público muito jovem e é tomado por uma singularidade que outras adaptações recentes não apresentaram no Cinema. Protagonizado por Angourie Rice no papel de Rhiannon, uma garota de 16 anos, Todo Dia narra o encontro entre ela e A e a historia de amor e amizade que constroem juntos. Seria um namoro como qualquer outro, porém A é uma alma que, a cada 24 horas, desperta no corpo de outro(a) adolescente de mesma idade, podendo assumir a vida de qualquer pessoa, independente de gênero, raça, biótipo etc.
No começo da história, Rhiannon é uma daquelas adolescentes loiras e belas que tem um namorado bastante imaturo, possessivo e imbecil no Ensino Médio, Justin (Justice Smith). Ele não a enxerga na melhor acepção da palavra, ou seja, namora a garota bonita da escola mas não há um sentimento mútuo, caloroso por parte dele. Este comportamento dele arruina qualquer tentativa de amadurecimento do relacionamento. Certo dia, A entra na vida dela e a transformação do cotidiano é excitante a cada nova pessoa. Assim, a história é enriquecida por uma jornada de como amar uma pessoa diferente todo dia tendo ela a mesma "alma".
O curioso da modernidade da história é que, por mais que seja uma ideia aparentemente bizarra, ela tem três principais virtudes: engraçada, libertária e humana. É um excelente roteiro sobre como valorizar o presente, o amor e a diversidade que foi bem executado nas mãos do diretor Michael Sucsy que passou pela experiência de outra história de amor em "Para sempre" (The vow, 2012). É interessante como a forma de execução fluída, simples e despretensiosa estimula o envolvimento com a história, com uma edição que acondiciona os diferentes momentos dos personagens, uma divertida troca de parceiros que, ainda assim, desenvolve a conexão entre A e Rihiannon. Bem louco mesmo!
Falando mais sobre essas virtudes, primeiramente, a faceta divertida é observar a mudança contínua de parceiros realizada pela garota sem que ela transmita uma ideia de ser volúvel e vulgar. A relação é desenvolvida com sinceridade e liberdade, na qual ela é uma personagem que vem a quebrar o preconceito que muitos de nós teríamos ao dar de cara com um homem ou uma mulher que não nos atraia fisicamente. Este(a) parceiro(a) desconhecido que chega a cada 24 horas é uma forma de aceitar as diferenças e ver além das aparência, de estar inteiro para amar uma pessoa, de reconhecer que ela é muito mais do que um corpo e rosto bonitos, de uma condição social X , de um status Y.
Ao mesmo tempo, este casal é tão único e unido em uma só relação de afeto, mas também está aberto ao todo, ao sentimento de não posse. É como uma relação monogâmica com as múltiplas possibilidades de pansexualidade. Assim, o libertário é ocupar um corpo e se apaixonar um pouco mais a cada dia, é se permitir o novo e o diferente, é viver intensamente este presente que nem sempre nos permitimos nos apaixonar sem freios, medos e preconceitos. Diferente de Justin, o namorado babaca, "A" não trata a garota como um objeto de posse. Esta ideia é importante para compreender o todo.
A humanidade da história é incorporada nos diálogos entre Rhiannon e A e em como ele(a) a valoriza pouco a pouco e vice e versa. Em um mundo no qual as pessoas têm estado solitárias e depressivas, em especial, os mais jovens atormentados por seus ciclos de mudança, Todo dia traz este laço de companheirismo, afeto e esperança. Com delicadeza e diversão, o filme entrega uma das coisas mais prazerosas do romance: É possível estar inteiro para o outro!, principalmente quando entra a figura de Alexander (Owne Teague), um garoto que tem um jeito todo especial de ser, que tanto A quanto Rhiannon endossam como um cara incrível.
O longa também tem outras qualidades: trilha sonora e elenco. Na trilha sonora, músicas como "This is the day" de The The, "What about us" de Pink, "Electric Love" de BØRNS e "May I have this Dance" de Meadowlark se destacam. Já o elenco é bem variado, reafirmando essa diversidade de tantos corpos, rostos e vidas que estão aí na existência. Entre as participações, está a nova juventude do Cinema e TV americanos: além de Justice Smith, que recentemente participou de Jurassic World: O Reino Ameaçado, Ian Alexander (da série Netflix "The AO"), Jacob Batalon ( de Homem Aranha: de volta ao lar e Vingadores: Guerra infinita).
Todo dia é um filme agradável e eficiente como adaptação. Mesmo com uma história muito fora da caixa, não deve ser desacreditado pela audiência por abordar vários temas contemporâneos como gênero, relacionamentos, juventudes. Acima de tudo, é uma história que tem carisma, fundamentada em uma questão maior e universal: a aceitação e o amor. É sobre amar e ser amado independente do jeito de ser. É sobre desejar o verdadeiro amor ao outro. É sobre querer a felicidade de quem se ama. É sobre sentimento, o real.
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