Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
O tempo no Cinema visto sob a perspectiva do tempo narrativo empregado em uma determinada obra cinematográfica coopera ou não para torna-la singular. A Testemunha (Witness, 1985) do cineasta Australiano Peter Weir é um desses casos especiais. Tem uma notória qualidade no tempo cronológico, se estabelecendo como um filme que envelheceu bem e com excelente reputação. É cheia de virtudes na sua concepção, combinando um thriller que, no tempo interno do filme, apresenta um híbrido desenvolvimento do drama com diferenças culturais e uma historia de amor.
O roteiro de Earl W. Wallace e William Kelley, vencedor do Oscar 1986, conquista por ter uma personalidade muito própria nesse hibridismo. Ele não se perde na construção narrativa e transita entre os gêneros com bastante naturalidade. Se adequa e é bem suportado pela excepcional direção de Peter Weir. O diretor executa com qualidade dramas de natureza conflitiva como "Sociedade dos poetas mortos", outro grande sucesso na sua experiência no Cinema Americano.
A historia começa com uma situação problema na qual Samuel (Lukas Haas) está viajando com a mãe Rachel (Kelly McGillis) e testemunha o assassinato de um policial por outros policiais corruptos. Mãe e filho pertencem à tradicional comunidade Amish, grupo religioso cristão que têm estilo de vida bem ortodoxo, falam o alemão suíço e habitam grande parte da Pensilvânia. Assim, o crime os leva a uma realidade totalmente distinta do cotidiano bucólico e pacífico que vivem. Vulneráveis no meio urbano, conhecem o investigador do caso, o policial John Book (Harrison Ford) que tem que proteger a testemunha.
A organização do tempo narrativo e o ritmo da direção mantem o suspense de maneira bem distinta do convencional. O filme começa com um evento criminal de impacto, uma morte dentro do banheiro, uma criança que vê o rosto do assassino, um ambiente urbano e violento. Posteriormente, parte considerável da historia se passa em uma fazenda Amish com John Book conhecendo e participando dos costumes da comunidade, desenvolvendo uma relação afetuosa pela família anfitriã. Paralelamente, são intercaladas cenas com a movimentação dos policiais corruptos e a preparação para o grande final.
A narrativa chega a um ponto interessante: apesar do risco de vida sofrido por Samuel e família, não basta apreciar apenas a proteção à testemunha mas como a relação de John Book com eles é fortalecida em uma cultura diferente da dele. Sua proximidade com Rachel, uma mulher viúva, de valores conservadores faz um contraponto com outra característica atraente da personagem: ela confia em John e é sincera com os sentimentos e desejos, então, as interações entre ambos trazem uma tônica afetiva e eroticamente tensa. Entre as cenas mais belas, se destacam as de cumplicidade entre Harrison Ford e Kelly McGillis, tanto na atenção e cuidado que ela tem com ele como o desejo aflorado que pouco a pouco é visível na troca de olhares, nos sorrisos, nas palavras não ditas.
Peter Weir é um grande diretor que lamentavelmente sofreu uma queda brusca de produções. Permaneceu valorizado em um tempo que não volta mais. A Testemunha é um belíssimo trabalho que ele deixou na história do Cinema e não pode ser esquecido. É uma obra cinematográfica que não leva o espectador ao óbvio thriller mas busca valorizar uma dramaturgia de choque cultural, uma reflexão entre os valores vigentes nas grandes cidades afundadas na violência e no cinismo das relações e os hábitos e valores do desprendimento notáveis na comunidade Amish. Cabe levar em conta que, mesmo que há a simplicidade e o desapego no Amish, sob outros pontos de vistas, a rigidez desse modo de viver é um tipo de violência, o que explica o conflito de Rachel.
Em uma das mais bem construídas cenas, o diretor coloca homens e mulheres na construção de um celeiro em um exímio trabalho coletivo que se traduz em um exercício cinematográfico de total desapego ao individualismo e violência da civilização. Peter Weir usa um tempo narrativo considerável nessa parte, como um cuidadoso artesão, ele constrói cenicamente um espírito comunitário na qual Harrison Ford tem uma participação inesquecível.
Essa relação afetiva entre protetor x testemunha e como esses sentimentos levam a uma dimensão de uma "quase família" convidam o público a seguir o ritmo da vida comunitária. O tempo é bem lento e a mudança do drama para o thriller policial no último ato provocam um ligeiro estranhamento, entretanto, no geral, o longa possibilita um bom engajamento na experiência. Por vários momentos, é possível esquecer o crime por um tempo e contemplar como John Book se relaciona com a comunidade .
Com a boa performance de Harrison Ford, o policial desenvolve emoções em um meio cultural que não tem nada a ver com a racionalidade de sua profissão, seu comportamento, seu estilo. Ainda assim, a camada dramática do romance se torna um aspecto sedutor e real. É como esperar converter uma historia trágica de crime, perigosa e arriscada, em um convívio de paz para Rachel, John e Samuel, em uma possível nova família, em um vínculo positivo após um encontro manchado de sangue.
A questão para reflexão é: um novo recomeço é possível ou não entre essas duas culturas? Testemunhe essa pequena joia!
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