Mostra SP 2020 - 22 de Outubro a 04 de Novembro
Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Dias (Days, 2020) é uma joia rara do Cinema Asiático, formidavelmente bem dirigido por Tsai Ming-Liang. Aquele tesouro humanizado que a gente pode guardar em uma caixinha de música ao som de Terry de Charles Chaplin. O filme, com origem em Taiwan, narra a solidão na qual dois homens vivem e sobrevivem em um cotidiano que nem sempre é compreensível. Kang (Lee Kang-Sheng), homem de meia idade e de classe social média, vive sozinho, já estabelecido. Non (Anong Houngheuangsy), jovem, na condição pobre, vive em um apartamento modesto em Bancoc. Duas gerações diferentes. Dois homens originários de dois mundos distintos, o urbano e o provinciano; há alguma possibilidade de encontro em dias de profunda solidão?
Os dias correm rapidamente, atropelam sonhos, guardam sentimentos, silenciam as palavras, assim o indivíduo fica imerso em uma força que lhe puxa para uma solidão que se reflete na dor da alma e do corpo físico, no vazio da existência, na sensação de que, continuamente, algo lhe falta, ou que um encontro inesperado aconteça para perceber que ali, há um sujeito que sente, pensa, ama. Já no início do longa, o cineasta enquadra um close no experiente Lee Kang-Sheng. O que seu personagem está olhando? Para o nada, ou para alguma saída que lhe salve do anonimato? ou,talvez, ele está pensando em como curar a dor psíquica que insiste em fragilizar o seu corpo?
Não há quase diálogos no filme. Há apenas dois corpos, solidão e silêncio que se alternam nesses homens. Com essa escolha narrativa, a força da imagem sem som, ou com apenas alguns sons do ambiente, do tédio e rotina do dia a dia, torna-se ensurdecedora. A solidão tem desses emudecimentos. O silêncio que também grita na mente, que bem poderia ser substituído por um "como está se sentindo"? "Eu estou aqui, segure minha mão..." ou "apenas permaneça ao meu lado, olhe para mim, deixe-me sentir sua pele e calor".
E o silêncio em Dias é um personagem tão protagonista como os outros. Ele está, desde permanecer na cama, fechar os olhos e não querer acordar com a mesma solidão, passando pelo toque nos corpos nus, na massagem que alivia a dor ao curar, ainda que provisoriamente, um pouco dessa alma solitária, ou naquele beijo erótico e prazeroso que, no ápice do gozo, encontra o sabor dos afetos e desejos.
Dias são como dias, encerrados em sua continuidade de dias, semanas, meses, anos, encarcerados na própria semântica da palavra. Há um prolongamento do cotidiano, assim como há nas longas tomadas do cineasta que, com muita habilidade, diz muito no silêncio. Em todas as cenas, o diretor mantem a força das imagens que tudo dizem, com um ritmo lento que adensa a complexa experiência da solidão.
Dias, dias e dias, e com um explorar crível do cotidiano que consome a existência, o filme expressa, de forma madura e realista, o drama de homens solitários, um drama universal de sujeitos à espera de algum afeto que, talvez, apareça, talvez não, assim são os dias que insistem em existir com tanta falta, dias que poderiam existir com mais amor; dias nos quais, pouco a pouco, as pessoas esvaziam o pouco de afeto que ainda resta no mundo; dias nos quais há incomunicabilidade, esperança, saudade e tantas outras dimensões da solidão humana.
(4,5)
Fotos: uma reprodução Mostra SP para imprensa credenciada.
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