Mostra SP 2020 - 22 de Outubro a 04 de Novembro
Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Dizem que quando os pais envelhecem se tornam como bebês que precisam receber maiores cuidados pelos filhos e demais familiares. Essa realidade faz parte do cotidiano de muitas famílias cujos pai ou mãe, ou avôs e outros entes queridos são confrontados com um drama relacionado à velhice: alguma doença degenerativa como o Mal de Alzheimer.
Em Apenas mortais (Being Mortal, 2020), do jovem cineasta Chinês Liu Ze, o centro de uma família gira em torno do tratamento dessa doença que atingiu o seu patriarca. O diagnóstico médico informa que ele se encontra em estágio severo da enfermidade, com isso, a história enfoca o drama de uma das filhas, Xian Tian (Tang Xiao-Ran) que, após terminar um relacionamento, muda-se para a casa dos pais para ajudar a mãe nesses cuidados. Como protagonista, ela tem que enfrentar a doença do pai mas também mudanças intimistas no amor, trabalho, tempo e privacidade.
O recorte narrativo de Liu Ze agrega muito valor ao longa a medida que ele traz a experiência e dilemas de uma filha, assim, os sentimentos, as dúvidas e as renúncias baseados em uma realidade bem feminina. Não é apenas Xian Tian que cuida do pai, mas a mãe dela tem que desdobrar nas atividades como cozinhar, cuidar da casa, levar o marido ao médico, alimentá-lo, limpá-lo, assim como outra irmã é responsável por ser arrimo financeiro e representa a mulher que não se afasta da carreira e do trabalho. Todas, de uma forma ou de outra, têm suas dinâmicas cotidianas e seus relacionamentos familiares e/ou afetivas influenciados pela doença do patriarca.
Os conflitos são narrados de uma forma diferente de outros filmes sobre Mal de Alzheimer, mesclando a realidade com atmosfera de sonhos que, desse modo, dão vazão às emoções de Xian Tian diante da doença, da morte, do esgotamento da memória do pai, do amor e da compaixão. O diretor orquestra o melhor das cenas, desde a dificuldade de um banho no patriarca, passando por internações em hospital e as crises de apagamento da memória. Ainda assim, a narrativa não apela para uma apresentação cênica mais tradicional e formatada. Ele não endurece ainda mais essa realidade, pelo contrário, ele orquestra questões complexas como morte, amor e velhice com afeto, ternura.
Para enriquecer a narrativa de maneira realista sob uma perspectiva feminina, o cineasta contribui bastante ao colocar a relação amorosa de Xian Tian em cena, como aquela filha que vivencia com essas oscilações e inseguranças afetivas, a cobrança (in)direta da sociedade para a mulher ter um homem ao lado, uma casa, filhos e família. Ela é a mulher que tem que lidar com o adoecimento degenerativo do pai, com isso, o casamento se torna um segundo plano por mais que ela sinta esse desejo e/ou pressão social.
É um belo filme, um dos melhores da Mostra SP 2020. Em sua duração de 96 minutos, ele é tão honesto que, quando chega ao desfecho, deixa a sensação de que a história não deveria ter terminado, de que havia um pouco mais a ser compartilhado e sentido com essa família. É comovente testemunhar esse espírito dócil e humanizado em um meio tão doloroso como o Mal de Alzheimer. Em sociedades Ocidentais como a Brasileira que, muitas vezes, não respeitam sequer os idosos, esse filme é uma lição de vida, uma experiência de amor, lealdade e solidariedade, uma representação que não é fácil conviver com a morte antes mesmo de chegar o último respiro.
A sinceridade fica visível a cada plano, a de que a velhice traz emoções ambíguas, entre a realidade e o sonho, entre a culpa e o amor, entre o querer fugir dos problemas e o querer permanecer, ajudar e amar. Não é fácil ver o sofrimento de quem tanto se ama e não poder lutar o suficiente contra uma memória que se esvai.
Fotos: Uma cortesia Reprodução Mostra SP para imprensa credenciada.



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