Repescagem Mostra SP - 05 a 08 de Novembro
Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Vencedor do Urso de Ouro e do Prêmio do Júri Ecumênico do Festival de Berlim, Não há mal algum (There is no Evil, 2020) é um longa-metragem composto por quatro histórias profundamente dramáticas e humanizadas que mesclam escolhas morais e a pena de morte. Dirigido pelo cineasta Iraniano Mohammad Rasoulof, é narrado como 4 contos cujos personagens centrais, a partir de determinado momento, são obrigados a apertar o botão ou o gatilho para assassinar condenados. Alguns o fazem, outros não. Com isso, a narrativa mostra as fronteiras entre a moralidade e a liberdade em um regime totalitário como o do Irã.
Mohammad Rasoulouf é um diretor polêmico que, dada a sua formação sociológica e o seu posicionamento militante, continua sendo perseguido pelas autoridades do país, logo, aos olhos do governo, ele é uma pessoa non grata. Em seu trabalho cinematográfico, ele dribla a censura e, além da denúncia vazada em Não há mal algum, o cineasta se ocupa de enfocar a humanidade em um contexto de violência e repressão. Os personagens são afetados pelo autoritarismo e mando do governo, ora aprisionados pelo tirânico Estado e acatando suas ordens para a própria sobrevivência, ora se rebelando e escapando como um ato de resistência.
O cineasta realiza um formidável trabalho de direção de atores, considerando que, em um período médio por história, ele explora a densidade dramatúrgica dos personagens centrais, com excelente apoio dos coadjuvantes. Todos estão ali bem articulados com a mise en scène e cumprem uma função importante nas interações com o protagonista, tanto sob a perspectiva do cotidiano familiar ou dos relacionamentos quanto levando em conta as influências autoritárias do regime.
Na primeira história "Não há mal algum", uma das melhores no roteiro e execução narrativa, Heshmat (Ehsan Mirhosseini) é um exímio pai de família e filho. É atencioso com a esposa e a filha, dedicado e sistemático com as responsabilidades cotidianas, realiza as atividades externas e domésticas com disciplina e ajuda a cuidar da mãe idosa. Na aparência, um cidadão comum como qualquer pessoa, entretanto, ele tem um papel importante na aplicação da pena de morte. Neste sentido, essa história é uma das mais complexas considerando a diferença entre o viver com a família e seus afetos e o executar ordens na prisão. É perceptível sua angústia e silêncio, mas também a adaptação a uma difícil função social.
Na segunda história "Ela disse: Você consegue", a narrativa se dá com uma ação violenta mais impulsiva na qual o protagonista corre riscos na prisão. Agrega-se aqui uma problemática relevante relacionada ao jovem do Irã, que é obrigado a cumprir o serviço militar para, depois, ter alguns outros direitos como trabalhar e ter um passaporte. Pouya (Kaveh Ahangar), com seus sonhos de viajar com a namorada e ser livre para aproveitar a sua juventude, não quer ser um assassino do governo. Agir a esta imposição é ferir seus valores e vontade. Esse fragmento coloca o protagonista em uma situação emocional de intenso stress a fim de escapar da ordem de matar outra pessoa. Transtornado, ele é capaz de enfrentar o sistema sem medir as consequências dos seus atos.
Na terceira história "Aniversário", o cineasta continua o desenvolvimento de personagens jovens cujos destinos são impactados por ações relacionadas à pena de morte. Javad (Mohammad Valizadegan) recebe uma folga para encontrar a amada e propor um noivado à família. Lamentavelmente a família está em luto. E o que ele tem a ver com essa triste perda? Assim o cineasta prepara terreno para o choque ( e tragédia de Javad). Trata-se de um plot twist trágico, corroborando que esta é uma história bem dolorosa que mostra o quão expostas as vidas das juventudes estão em um país totalitário. Em algum ponto de encontro, daqueles bem destrutivos, o infortúnio surge e inviabiliza a continuidade de um plano de felicidade.
A última história "Beije-me" é resultante de 20 anos de silêncio que impactam a relação entre pai e filha e o exercício de uma profissão que a muitos salvaria. Destaca-se aqui a improvável convivência familiar diante das decisões tomadas a aceitar ou não as condições da pena de morte, decisões que mudaram a trajetória de Bahram (Mohammad Seddighimehr). Infelizmente, vidas são separadas e vozes silenciadas, para assegurar a própria proteção de entes queridos. É interessante notar, mais uma vez, que as dimensões individuais se fundem com o contexto social, as realidades repressoras e suas ameaças às liberdades. Como sempre, há consequências nos quais o tempo perdido não é resgatado, levando a um conflito que ainda ecoa nas relações familiares.
Na construção narrativa, a primeira e a terceira histórias agregam bastante qualidade ao longa pois têm dramas melhor estruturados e excelente desenvolvimento dos personagens e da decupagem, assim, explorando bem elenco de apoio, as cenas e a dramaturgia das interações. Na execução como um todo, a primeira história chama a atenção pelo elemento surpresa, criando uma crível oposição entre a apresentação do personagem Heshmat e o que ocorre no desfecho. Ademais, falta no filme uma personagem central feminina. Ainda que, o ambiente prisional é masculino e que as coadjuvantes femininas das histórias 3 e 4 sejam importantes para compor o drama, teria sido positivo observar uma ênfase maior em alguma mulher já que as relações familiares e/ou interpessoais são a matéria humana diretamente impactada pelo regime opressor.
Por fim, o imensurável valor do filme é a competência do cineasta em manter a integração temática da pena de morte com o impacto desse controverso assunto nas vidas dos sujeitos. Ninguém escapa ao autoritarismo do Irã, mas há espaço para a liberdade, ainda que isso implique aceitar as tragédias pessoais e incertezas. Por esse motivo, todas as histórias são dilacerantes. Cada personagem foi atingido diretamente em sua liberdade de ser e decidir em situações de muita pressão. A diferença é como eles reagem em decisões que estão relacionadas a sobreviver ou resistir. O preço é alto, todavia, cabe a cada um exercer sua liberdade como um direito inexorável.
Fotos: uma cortesia reprodução Mostra SP . Imprensa credenciada.
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