Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Depois de ganhar prêmio do Júri no Festival Internacional de Animação Annecy, Mémorable (2019), curta-metragem de Bruno Collet também agradou por aqui, ganhando como melhor curta de ficção - júri popular do Anima Mundi em São Paulo, em premiação realizada no último domingo, 28 de Julho, no auditório Oscar Niemeyer no Ibirapuera. Na edição do Rio de Janeiro, o diretor e animador conquistou o mesmo prêmio, além de melhor direção de Arte. Todos merecidos para um filme que aborda o Mal de Alzheimer com tanta criatividade e delicadeza.
Formado pela Escola de Belas Artes de Rennes (França), Bruno Collet tem ampla experiência em animação em stop motion e é uma referência nesse campo cinematográfico e em festivais, com trabalhos como "Le Petit Dragon", uma homenagem a Bruce Lee, e "Jour de Gloire", sobre guerra. Em seu mais recente trabalho, com apurado senso estético, uma singular sensibilidade e uma composição animada tecnicamente impecável e poética, o diretor e sua equipe merece todo o prestígio e reconhecimento.
Os personagens são um casal de idosos, Louis (André Wilms) e Michelle (Dominique Reymond). Ele é um pintor que começa a perceber as mudanças no seu mundo exterior. Os objetos estão se desintegrando, a vida está mudando ao seu redor. No diálogo com a esposa, para Louis, ela parece outra pessoa, todavia, talvez ainda haja alguma lembrança, conexão afetiva.
Esta proposta é de uma beleza singular em virtude de que, no Alzheimer, o mundo se desintegra em um processo muito doloroso para quem está com a doença, a família e amigos. A memória que conecta a pessoa ao mundo, aos relacionamentos, ao ser e pertencer vai desaparecendo;em alguns momentos, ela volta, depois não mais. Toda essa dolorosa degeneração que afeta a mente é narrada de uma forma absolutamente delicada, poética e bem humorada nesse curta.
Um dos primeiros méritos é o roteiro. É muito bem elaborado na proposta para abordar sobre o Alzheimer, relacionando a memória e a desintegração dos objetos, imagens, pessoas e todo o cotidiano deste senhor pintor. Tudo se conecta, inclusive a própria aparência física e expressões de Louis lembram as pinceladas frenéticas de Van Gogh, é como uma pintura em si.
O designer dos bonecos tem uma turbulência que não necessariamente é uma expressão do envelhecimento apenas, mas também se relaciona com uma linguagem artística do animador alinhada com o Alzheimer, o esquecimento, a desintegração de um eu frágil, melancólico, caótico, e combinada com as referências da Arte contemporânea e mudanças de tempo, espaço e percepção do protagonista.
O designer dos bonecos tem uma turbulência que não necessariamente é uma expressão do envelhecimento apenas, mas também se relaciona com uma linguagem artística do animador alinhada com o Alzheimer, o esquecimento, a desintegração de um eu frágil, melancólico, caótico, e combinada com as referências da Arte contemporânea e mudanças de tempo, espaço e percepção do protagonista.
Afinal, o que permanece na imaginação da pessoa acometida pelo Mal de Alzheimer? Qual é o seu olhar? Quais suas percepções?
Inspirado pelo pintor Americano Willian Utermohlen (1933 -2007), que teve o diagnóstico da doença em 1995 e continuou pintando suas obras, Bruno Collet traz uma outra dimensão narrativa: o que Louis percebe ao redor. Não se trata de uma perspectiva apenas do personagem, todavia, coloca também o público a observar a doença com mais empatia em meio a tanto sofrimento, percebendo como um pessoa com Alzheimer percebe o mundo e as pessoas em mutação, como ele sofre as alterações das percepções temporais, espaciais, visuais, assim como as relações são afetadas como lembrar da própria esposa.
É exemplar o trabalho de relação entre as linguagens da Arte e do Cinema nessa animação, assim como com a biografia de um pintor cuja memória foi se transformando em uma tela em branco, principalmente na relação entre memória, sujeito e expressão da alteridade. À medida que as imagens ao redor se desintegram de forma visualmente poética, há ternura e leveza, mas também melancolia, tristeza em observar o que está acontecendo com Louis.
Na direção de arte e em geral, há uma notória competência de Bruno Collet para conciliar o stop motion com o 3 D. É uma combinação que, para o mercado de animação, é construtiva e extraordinária como uma boa prática e inspiração. Mémorable encanta pela sua capacidade de reunir o artesanal com a tecnologia. Os bonecos animados por Collet e sua equipe têm um minucioso trabalho artesão, um detalhismo vivaz e único, assim como uma identidade própria na sua concepção artística. Para as transformações que ocorrem no ambiente, o diretor utiliza o 3D e orquestra um realismo delicado, como se as lembranças desaparecem vagarosamente como um sopro imaginário que resiste ao tempo.
A excelente direção resulta em uma animação sensível, sensorial, reflexiva. Tem amor e humor, tem a luta pela vida e pela permanência da memória. Tudo em apenas 12 valiosos e inesquecíveis minutos!
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