Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Inspirado pela ideia de mostrar o valor da diferença, o diretor Philippe Godeau idealizou o projeto de "Jornada da vida" (YAO, 2018), longa que estreou esta semana no Brasil nas cidades de Niterói, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Baseado em pesquisas realizadas com Agnés de Sacy que buscaram as paisagens e cultura do Senegal para realizar uma fábula de amizade, encontros e desencontros de um ator negro de ascendência senegalesa, a história é uma combinação leve e bem humorada de drama com road movie.
Omar Sy (de Os Intocáveis) é Seydou Tall, ator radicado na França que, em visita ao Senegal, encontra Yao (Lionel Louis Basse), um menino que é seu fã. De maneira imediata, Seydou sente afeto pelo garoto e eles começam a passear juntos pelas estradas do país em direção à região lar de Yao. Este caminho marca um retorno de Seydou à terra de seus ancestrais, fora da rotina de artista e celebridade, assim ele vive uma jornada como homem comum, traço da narrativa mais significativo para dar o tom de fábula.
Famoso na França e um dos atores negros mais queridos internacionalmente no Cinema, Omar Sy assina a coprodução da obra, parceria coerente para um roteiro que expressa muito do que ele é. Tanto que o diretor e co-roteirista escreveram a história pensando no ator. Seydou Tall é uma celebridade que, em um curto período, viaja a um país Africano e se confronta com as realidades e cultura locais da terra de seus antepassados. Ele não pôde levar o filho pequeno, mas um outro garoto cumpre função similar na jornada, logo, ao mesmo tempo que há uma aproximação da figura de pai e celebridade, há também um afastamento da realidade para uma experiência romanesca, revigorante e transformadora.
Selecionado entre mais de 600 crianças, o ator Lionel Louis Basse dá muita espontaneidade à história por retratar a infância local. Com carisma, sua atuação simples e próxima traz os elementos da família, da empatia, das raízes, principalmente por ser a criança que um dia Seydou já foi. É um menino muito simples, inteligente e comunicativo que não deixou de sonhar em meio às restrições de sua região e família. Ele conhece literatura e é um ávido leitor, além de ser possível associá-lo à figura jovem de Omar Sy. Sob esta perspectiva, ao observar o filme, o personagem de Basse é amigo, mas também poderia ser o filho ou o próprio Seydou quando jovem. Estas perspectivas que misturam a ficção, a realidade e todo o simbólico que o Cinema tem potência para projetar deixa a história mais sensível,bonita.
A sinergia entre os personagens de Seydou e Yao tem muito de paternal. É como se o ator tivesse a chance de quebrar a rotina e se dedicar à uma viagem com o filho, mesmo não sendo este o seu filho real. Neste sentido, a história tem sua beleza como obra cinematográfica que resgata temáticas como paternidade, ancestralidade e identidade mas não as estressa com uma abordagem pessimista, pesada. Pelo contrário, é um filme "feliz", por assim dizer. É uma história que se compromete com os valores ancestrais mas não os explora intensamente, deixando para o espectador uma janela para se conectar com os personagens, seus encontros e desencontros.
Na direção e dinâmica narrativa, Seydou é um estrangeiro na África, mesmo sendo descendente de Africanos. Desta forma, Philippe Godeau oferece um filme com leveza que, seguramente, fará o público pensar sobre valores, identidade e pertencimento. Quando a identidade em um mundo cada vez mais global e líquido está presente em um filme, a narrativa dá espaço para algo muito maior à reflexão: a questão da alteridade. Afinal, quem somos? Quem são nossos ancestrais? Como nos reconhecemos e a qual lugar pertencemos? Como vemos o(s) outro(s)?
Em várias cenas, Seydou tem um comportamento ambíguo. Está à vontade com toda aquela simplicidade e ancestralidade negra, mas também mantém uma postura de estrangeiro, de alguém que precisa voltar à França "branca". Graças à boa companhia de Yao e o talento humorístico de Omar Sy, ele se torna um personagem agradável, uma celebridade nada afetada, o que reforça o tom de fábula, já que certamente muitas celebridades não se comportariam como ele, não sairiam pela estrada a viajar com uma criança.
De forma bem simples, "Jornada da vida" oferece mesmo uma jornada de reflexão ao público ao apresentar o Senegal naturalmente bem fotografado e sem muita maquiagem. Existe um híbrido de fabulação com realismo na filmagem, tornando a experiência agradável, afetiva. Com acertos, o diretor consegue manter-se bem equilibrado entre o ficcional e o documental, com destaque para a escolha das locações e a fotografia.
É também o tipo de filme que o diretor poderia ter explorado um tom mais político para expressar esta realidade, mas este não é o foco da direção. É um filme mais para despertar a noção e o valor da diferença nas pessoas do que impressionar o mercado cinematográfico e ganhar prêmios. Ele opta por filmar a política da simplicidade, ou seja, em como os valores são verdadeiramente manifestados pelo povo, como por exemplo, ao retratar com naturalidade o Islamismo manifestado no cotidiano dos senegaleses, que realizam suas preces coletivamente em alguns horários específicos do dia.
Em sua entrevista original para o filme, o diretor diz" O Senegal que eu mostro não é muito turístico, existe uma preocupação minha em apresentar um país e uma cultura para torná- los um pouco menos distantes. Gosto de pensar que o Cinema pode transformar as mentalidades, atiçar a curiosidade e que ele nos permite com mais facilidade em direção daquilo que é diferente de nós". Aqui, sem dúvidas, após ver o filme, dá vontade de visitar a África, conhecer pessoas, explorar todas as Africanidades possíveis.
E também menciona algo que, com certeza, tem de tudo para despertar nas pessoas o desejo de assistirem à esta mistura de realidade e ficção, principalmente em um mundo que, infelizmente, tem se tornado tão intolerante e obscuro: "Quando o Cinema permite aos espectadores se confrontar com seus medos e torná-los menos assustadores, atinge-se algo extraordinário. O Cinema nos faz entrar na casa das pessoas e observá-las de maneira diferente. Eu adoraria que "Yao" permitisse aos espectadores se confrontarem sobre as noções de diferença."
(*) falas da entrevista e fotos, uma cortesia Califórnia Filmes (press)
Adorei o seu comentário. Você viu o que eu vi no filme e me mostrou, inclusive, o que eu não vi.
ResponderExcluirOlá Prof. Lair,
ExcluirPrimeiramente, agradeço pela sua visita ao meu site. É um prazer ter leitores como você que buscam por novas experiências cinematográficas.
Fico feliz de poder contribuir com a ampliação do seu olhar no Cinema. Retorne sempre que puder e compartilhe suas percepções.
Abraço
Cristiane MaDame Lumière