Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Dramas que narram o sofrimento de crianças é uma experiência cinematográfica bastante dolorosa, mas é preciso denunciar, em documentários e na ficção, histórias reais vivenciadas pela infância. Em muitos contextos e locais, a infância não é bem tratada como deveria ser. Quando as narrativas são inspiradas em biografias reais, por mais revoltante que seja saber sobre os maus tratos às crianças, estes filmes servem para mostrar às pessoas que histórias ruins não devem se repetir. Elas quebram o silêncio da hipocrisia e violência humana.
Dirigido por Jesper W. Nielsen, o longa dinamarquês, Quando o dia chegar (Der Kommer en Dag, 2016) é ambientado no orfanato Gudbjerg em Copenhagen na década de 60. Inspirado em fatos reais, o nome verdadeiro da instituição é Godhavn, que recebeu várias denúncias de permitir abusos e violências em geral contra meninos. Em uma época que a Dinamarca tem como lema o desenvolvimento da nação, o diretor Frederick Heck, interpretado por Lars Mikkelsen, apresenta um estilo autoritário, desumano, capaz de realizar experimentos como seus internos, assim como fingir comandar uma "boa instituição" e ser conivente com a violência contra crianças e jovens.
A história enfoca a jornada de sofrimento de dois irmãos, Elmer e Erik (Harald Kaiser Hermann e Albert Rudbeck Lindhart), que inicialmente vivem com a mãe doente. Desprovidos de recursos e ociosos, eles começam a realizar pequenos delitos e sofrem das consequências de uma rotina pobre e sem estrutura para desenvolver suas potencialidades. Quando a mãe fica hospitalizada, eles são abandonados e enviados a Gudbjerg. A partir daí, começa a rotina de maus tratos institucionais, alternados com episódios imaginários de fuga e esperança dos irmãos.
A direção tem ações conscientes para não esconder nada do público. Esta transparência sustenta a qualidade do longa à medida que a história mostra claramente o abuso institucional contra a infância e a juventude. Violência e hipocrisia são constantes na narrativa, tanto sob uma perspectiva individual como professor pedófilo, diretor torturador, funcionários silenciados, entre outros, como também reunindo todos estes elementos para escancarar a perspectiva institucional em conservar as aparências e dissimular ser boa para manter sua reputação.
Por outro lado, neste drama de guerra no qual o orfanato é um campo de batalha para estas duas crianças, o diretor intercala cenas afetivas e lúdicas entre os irmãos que ajudam a acreditar que Elmer e Erik conseguirão escapar desta experiência tão desumana, inaceitável. Em um contexto de prisão e violência, os irmãos demonstram a força do afeto e da família, da proteção aos que se amam, aos sonhos despedaçados que ainda podem ser reconstruídos.
Normalmente os dramas dinamarqueses não colocam freios em mostrar as violências de vários tipos, desta forma, Jesper W. Nielsen explora o que este cinema costuma ter de melhor: roteiro, direção de atores e de fotografia.
O roteiro não deixa pontas soltas e dá conta de diferentes circunstâncias e nuances comportamentais dos variados personagens. O elenco tem espaço para mostrar como as várias pessoas reagiriam nestas situações. No mais, a dupla de atores irmãos é o que mantém a beleza e esperança. São carismáticos e maduros. Realizam cenas difíceis nas quais levam tapas e são humilhados, situações realmente complexas para atores mirins, então acabam por oferecer uma excelente atuação.
A dinâmica da história acerta em narrar ao espectador como os irmãos conseguem sobreviver no inferno e mostrar suas virtudes e desafios. Elmer é um exímio sonhador e contador de histórias, que tem como sonho viajar à lua . É um personagem infantil belíssimo porque, sendo o irmão mais novo, é o que ajuda todos os demais internos a não deixar de imaginar coisas boas, a entretê-los com as imaginativas histórias que servem como um analgésico às almas e corpos feridos. Infelizmente, é o que perderá a inocência, sendo uma das vítimas de abuso sexual.
Erick é um personagem tão complexo para uma criança, o qual o ator performa com muita competência. Por ter 13 anos, ele está na transição entre a infância e a adolescência, entre uma fase que não foi vivida integralmente (e saudavelmente) em sua potência e as responsabilidades e dramas do amadurecimento. Ele carrega o compromisso de cuidar do irmão menor e, portanto, seu papel é difícil por conta desta responsabilidade paternal tão prematura e frustrante, já que ele é mais uma vítima de abusos, mais uma criança que foi abandonada.
Cabe também mencionar o bom trabalho da atriz Sofie Gråbøl como a professora Lilian, uma mulher sem filhos que oferece o simbólico maternal à narrativa. Ela é a única personagem que verdadeiramente se sensibiliza com a situação dos meninos. Representa aquelas pessoas honestas e sensíveis que são esmagadas pela corrupção e violência institucional, mas que não se rendem às chantagens. Ela sofre o abuso do silêncio, o de se manter calada para que algo pior não lhe ocorra, mas também representa a solidariedade e a justiça.
O experiente Lars Mikkelsen é um gigante na atuação em um personagem extremamente desagradável. É impossível não odiá-lo, entretanto, é possível compreender suas motivações como um diretor de orfanato. Na sua essência, ele pensa estar fazendo o "bem" em uma educação punitiva, algo ainda muito comum em várias instituições. A instituição representa o seu ego e seu ego está a serviço da instituição.
Finalmente, a hábil direção de fotografia de Erik Zappon equilibra momentos torturantes e amargos em um espaço claustrofóbico com os de ludicidade, de liberdade imaginária. São as cenas de afeto e imaginação que aliviam o sofrimento e são o escape para um esperado retorno ao lar.
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