Sou MaDame Lumière. Cinema é o meu Luxo.

Por  Cristiane Costa ,  Editora e blogueira crítica de Cinema, e specialista em Comunicação Sob a perspectiva histórica da Edu...

Olhe para mim (Regarde moi / Look at me , 2018)




Por Cristiane Costa,  Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação



Sob a perspectiva histórica da Educação Especial,  considerando a Antiguidade até o início da Idade Moderna, crianças que nasciam com alguma deficiência ou algum transtorno eram consideradas defeituosas, possuídas por algum mal ou incapacitadas para a sociedade.  Elas não tinham direito à escola e nem cuidadores, então não eram reconhecidas como cidadãos de direitos a começar pela instituição básica familiar. 


Há evidências na literatura de que elas eram abandonadas em margens de rios, nas ruas, torturadas e mortas, assim como ignoradas pelas famílias que deveriam proteger os filhos. Basta lembrar que na Grécia Antiga, em Esparta, as crianças e jovens eram criados para ser soldados e, portanto, o ideal de perfeição, força e saúde era cultuado pela sociedade. Desta forma, crianças com qualquer deficiência eram desprezadas pelas famílias.


Com o desenvolvimento do pensamento moderno, tanto na Medicina como na Psicologia, Educação, entre outras áreas, as crianças e jovens especiais passaram a ser melhor compreendidos em sua singularidade e diversidade, o que não significa que não haja preconceito e até mesmo negação e impotência das famílias para educar e cuidar de filhos que tenham alguma deficiência e/ou transtorno. Essencialmente, a sociedade ainda está em evolução no tema e muitas distorções, ignorâncias e preconceitos devem ser rompidos.







Assim, toda esta introdução deve ser considerada  antes de assistir a Olhe para mim (Regarde-moi/ Look at me, 2018),  belo filme de Néjib Belkadhi, uma produção entre Tunísia e França, que aborda um drama familiar sobre Paternidade e o Autismo.  O longa fez parte da seleção oficial do Festival internacional de Cinema de Toronto (TIFF, 2018), Festival internacional de Cinema de Marrakech (2018, prêmio de melhor ator a Nidhal Saadi) e destaque na Mostra de Cinemas Africanos (São Paulo, 2019).



Na história, o ator Tunisiano Nidhal Saadi  personifica Lotfi, imigrante em Marselha, na França, e pai de uma criança autista que ele abandonou no seu país de origem. Após sua esposa, que também foi abandonada, sofrer um derrame, ele retorna à Tunísia para cuidar do filho autista. Além de abordar esta relação, trata-se de um filme sobre segunda chance na qual um pai tem uma experiência sensível e transformadora. 


O Autismo, também conhecido como Transtorno do Espectro Autista, é um transtorno global de desenvolvimento na qual a comunicação  e a interação social são a principal parte comprometida, provocando dificuldades para se relacionar com as pessoas e com o mundo. O autista tem um mundo bem particular na qual ele não necessariamente reconhece e precisa do outro, assim é necessário que famílias, colegas, educadores etc adequem a comunicação para estabelecer um relacionamento e uma boa convivência. 







O filme apresenta o personagem Lotfi como um pai que, por fuga, medo, egoísmo, irresponsabilidade, simplesmente abandona uma família. Para ele, enviar dinheiro para o filho é o suficiente, tanto que está construindo outra família na França. O início do longa apresenta bem este homem: impulsivo, nervoso, ignorante. Esta fúria passa um total desequilíbrio para cuidar de um filho e representa uma boa escolha do roteiro para começar o desenvolvimento do arco dramático do personagem.  Na essência, Lotfi não é um pai no começo do filme.


Ao chegar à sua terra natal, Lotfi enfrenta os dissabores que deixou ao abandonar uma esposa e filho autista. Ninguém da família da esposa gosta dele,  entre eles, Khadija (Sawsen Maalej), tia do garoto, entretanto ele é o pai e, com um mistura bombástica de sentimentos de culpa, obrigação, orgulho etc, Lotfi decide cuidar da criança que agora está com 9 anos. Nestas interações conflituosas, destaque para a excelente atriz Sawsen Maalej, uma bomba relógio em cena que inicialmente representa a revolta feminina e familiar ao ver um homem ter abandonado filho e esposa.


É interessante notar que, independente da canalhice de Lotfi ao abandonar uma família e já pensar em construir outra na França, ele é um homem frágil e inseguro. Embora seja um homem bonito, na atitude é um ogro. Assim, por trás da casca dura, verdadeiramente, ter uma segunda chance para cuidar e amar o filho é algo que sensibiliza a narrativa. Como o ator Nidhal Saadi tem experiência como humorista, ele  consegue criar certa empatia neste papel, em outras palavras, é possível torcer por ele para conquistar o amor do filho.








Muito desta empatia é observar as situações dramáticas que ele passa para estabelecer confiança e uma conexão com uma criança autista. O aspecto positivo da execução do longa é não maquiar absolutamente nada. Em vários momentos, ele sente raiva deste filho e isso é normal. Não apenas familiares, como professores, vizinhos, cuidadores, absolutamente todos, em algum momento, sentirão raiva por não saber lidar com uma criança especial. Isso é inerente e humano, afinal estamos aprendendo como estas crianças podem ter uma vida melhor, mais digna e com melhor qualidade. Algumas pessoas o farão genuinamente, outras continuarão brutas e preconceituosas.


Convém observar também que o Autismo é um espectro, desta forma, há vários níveis de severidade e complexidade dentro do próprio espectro. Há crianças que têm mais facilidade para se inserir no cotidiano padrão, outras já são mais dependentes dos familiares e precisam de cuidados mais precisos e constantemente reorganizados, inclusive no que diz respeito à rotina.


No roteiro, o pai sente uma necessidade do "olhe para mim", que é a necessidade que temos de ver quem amamos olhando nos nossos olhos. É um desejo natural que o move. Como o Autismo é um transtorno neurológico que impacta a comunicação, o olhar de afeto do filho torna-se um desejo e um objetivo. O personagem se esforça para registrar os momentos de progresso, diversão e companheirismo do filho, utilizando principalmente a câmera, cenas que são bonitas e reforçam como é importante o amor dos pais / da família no desenvolvimento integral de uma criança  










Este recurso de utilizar constantemente a câmera para filmar o filho, embora pareça até, em algumas cenas, uma obstinação e vaidade pessoal do pai, pode ser interpretado como uma janela que possibilita novos olhares, ressignificações.  A câmera assim como o Cinema que dela depende,  registram a realidade e as possibilidades de romper os preconceitos, de explorar formas sensíveis de olhar difíceis situações e ter esperança nas superações. Neste filme, a câmera de Lofti se torna ainda mais o instrumento de comunicação entre pai e filho, além de registrar toda a jornada transformadora e suas lembranças. 


Outra força do filme é o elenco. Nidhal Saadi, Sawsen Maalej e Idryss Kharroubi são todos tunisianos, todos absurdamente comprometidos com seus papeis, com especial destaque para o garoto Idryss, uma revelação impressionante que deve ser reconhecida  e investida pelos produtores  e cineastas cinematográficos em outros filmes. Ele interpreta um papel bastante desafiador que parece simples mas não é. Sua atuação tinha que ser crível e não ridicularizar o transtorno já que a criança tem um nível de transtorno um pouco mais severo.







Olhe para mim é um filme necessário porque ele não julga os erros passados do pai e não insiste em um caminho sem solução.  Apesar de mostrar que Lotfi ainda faz parte de uma sociedade machista, na qual ele tem casos extraconjugais,  mente para as mulheres e tem um comportamento estourado, estamos diante de um pai aberto a cuidar do filho e se perdoar. O filme possibilita a segunda chance e o resgate do amor em realidades que muitos desistiriam, mas ele também expõe que há preconceitos e hipocrisias na sociedade Tunisiana, como em várias regiões do mundo. No Brasil não é diferente.


Finalmente, é importante mencionar que alguns especialistas em  Pediatria e Educação Especial comentam que , cada vez mais, estão nascendo crianças com espectro do transtorno autista no mundo, assim, em algum momento a sociedade terá que reavaliar como lida com o autismo e o que faz para assegurar respeito, qualidade de vida e dignidade a estas crianças.







0 comentários:

Caro (a) leitor(a)

Obrigada pelo seu interesse em comentar no MaDame Lumiére. Sua participação é muito importante para trocarmos percepções e opiniões sobre a fascinante Sétima Arte.

Madame Lumière é um blog engajado e democrático, logo você é livre para elogiar ou criticar o filme assim como qualquer comentário dentro do assunto cinema e audiovisual.

No entanto, não serão aprovadas mensagens que insultem, difamem ou desrespeitem a autora do blog assim como qualquer ataque pessoal ofensivo a leitores do blog e suas opiniões. Também não serão aceitos comentários com propósitos propagandistas, obscenos, persecutórios, racistas, etc.

Caso não concorde com a opinião cinéfila de alguém, saiba como respondê-la educadamente, de forma a todos aprenderem juntos com esta magnífica arte. Opiniões distintas são bem vindas e enriquecem a discussão.

Saudações cinéfilas,

Cristiane Costa, MaDame Lumière