Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Um dos grandes prazeres da Cinefilia é conhecer um pouco mais a história de vida de cineastas que deixaram obras magníficas no legado do Cinema. Assistir a um documentário biográfico de uma personalidade do Cinema e ter o privilégio de acessar seus registros é uma forma de nos aproximarmos da humanidade dele(a), assim, podemos observar seus altos e baixos e, de forma positiva, humanizá-los. Sabemos bem que, apreciadores da linguagem cinematográfica tendem a endeusar seus (suas) diretores (as) preferidos (as) sem se dar conta de que esses ídolos também têm falhas, vulnerabilidades e dramas pessoais.
Depois de passar pelo Festival de Cannes 2019 e receber a indicação para o Olho de Ouro de melhor documentário, Forman vs Forman (2019) faz parte da programação do É tudo verdade, uma excelente oportunidade de perceber como o diretor tcheco de grandes clássicos como "Um estranho no ninho" (One flew over the cuckoo's Nest, 1976) e "Amadeus" (Amadeus, 1985) conseguiu estabelecer sua carreira nos Estados Unidos mesmo com o permanente sentimento de exílio, os fracassos comerciais de alguns filmes e a distância dos primeiros filhos gêmeos.
Realizado pelos documentaristas Helena Trestíková e Jakub Hejna, o longa apresenta preciosas imagens de arquivo do cineasta; desde sua difícil infância como órfão de guerra, passando pelas suas dificuldades financeiras para fazer Cinema de resistência, a separação da família e o retorno à Praga para filmar "Amadeus". Com significativos registros de suas falas, nas quais ele declara os impactos do Nazismo e Comunismo nas esferas pessoal e profissional de sua trajetória, a importância do clássico Tcheco "Os amores de uma loira" (1965) e as portas abertas para dirigir "O Estranho no Ninho" (1976) e "Hair"(1976), podemos considerar um doc. essencial para constatar que nunca foi fácil para ele, como um Europeu oriental e com uma infância marcada por perseguição nazista à sua família, ser um grande cineasta.
Miloš Forman foi um órfão de guerra. Esse motivo, por si só, já é bastante trágico. Seu pai foi perseguido pela polícia nazista, a Gestapo. A sua mãe morreu no campo de concentração em Auschwitz. O jovem Forman já soube o que era solidão e abandono desde criança. Ainda assim, ele venceu através do seu Cinema. Ele não se tornou o mais milionário dos milionários diretores, e nem era preciso, isso nunca foi sua meta. A simplicidade do diretor estava em usar seu Cinema como liberdade, uma liberdade que foi tirada de seus pais, uma liberdade que foi cerceada no início de sua formação como indivíduo único e livre.
Como aspecto expressivo, esse documentário é sobre a sobrevivência de Miloš Forman no meio cinematográfico. Com um Cinema influenciado pelo Neorrealismo Italiano, e posteriormente, com as oportunidades de dirigir filmes na década de 70, terreno fértil da realização cinematográfica em nome da liberdade, Miloš Forman se apresenta nesse doc. mais como um homem comum, de "carne e osso" do que um cineasta inacessível. Apenas essa razão já transforma o filme em um imperdível prazer. Desta maneira, é notável na exposição dos registros, o quanto o diretor lutou, muitas vezes, em meio à solidão e distante de familiares, para não se render ao autoritarismo de épocas brutais.
Quando um cineasta atua em busca dessa liberdade de criação e de ser uma voz emancipatória, até mesmo o sentimento de miséria existencial e a depressão surgem em cena. Ao ver as imagens de Miloš Forman , sozinho e ocioso, em um quarto, podemos nos dar conta de que mentes geniais realmente passam por várias provações entre altos e baixos, e tudo isso faz parte do processo de busca de criação e liberdade artísticas e do Cinema de luta política.
Basicamente, esse documentário é sobre Forman sob a perspectiva de Forman. Isto explica o título "Forman vs Forman". É como um espelho, um direito à palavra e à sua memória, uma permissão para compreendê-lo. Tal escolha dos realizadores têm alguns contras, considerando que espectador não terá acesso aos "demônios" do cineasta. Ao contrário de ótimos documentários biográficos como "Uma carta para Elia" (2010) sobre Elia Kazan e "Bergman: 100 anos" (2018) que mostram questões mais caóticas sobre os polêmicos cineastas, o doc. em referência não se compromete à uma intimidade profunda.
No desenvolvimento e montagem do documentário, optou-se pelas imagens e relatos cronológicos do diretor de tal forma que apenas o ponto de vista dele é escutado como um bom bate papo, assim, conhecemos parte dele mas não, necessariamente, opiniões mais profundas que poderiam vir a comprometer sua memória. Com isso, não se trata de um filme "livro aberto" e controverso.
Outro aspecto bem evidente é a crítica ao Nazismo e Comunismo de uma forma não tão exaustiva e detalhada; desta forma, é possível perceber que o posicionamento político do diretor está acima de menções a x ou y ideologia, sua visão política não o coloca em uma classificação ou nomenclatura tão aberta e expressa no doc. Ele buscou a liberdade em toda a sua carreira e lidar com os fracassos que surgiam no meio de sistemas opressores.
Toda a qualidade do trabalho de pesquisa manteve respeito e dignidade pelo cineasta, desenvolvendo um doc. mais convencional e espontâneo. Aliás, é exatamente essa leveza que faz o filme fluir de maneira agradável e reveladora.
Assista ao filme on-line e gratuito no Festival, previsto para 26/09/20 às 13 h, nesse link.
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