Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Por força de um período brutal e obscuro na História do Chile, durante ditadura do governo Pinochet (1973-1990), o documentarista Chileno Patrício Guzmán teve que desistir de um sonho e viver em exílio. O distanciamento geográfico da pátria não o afastou dos afetos pelo país. Guzmán ama sua pátria e evoca a memória do Chile, apesar de ter uma madura consciência política, histórica e social que, da forma que a nação está, este não é o Chile que ele sonhou para si, seus compatriotas e o mundo.
Em "A Cordilheira dos sonhos" (La Cordillera de los Sueños | La Cordillère des Songes, 2019), uma co-produção Chile e França, ele avança na trilogia composta por outros dois filmes excepcionais "Nostalgia da luz" e "O Botão de Pérola", desta vez, o cineasta relaciona a natureza da Cordilheira dos Andes, a memória e o Chile contemporâneo.
As imagens iniciais enfocadas na sublime beleza da Cordilheira, e intercaladas com depoimentos de especialistas em Artes e Arqueologia, entre eles, os escultores Francisco Gazitúa e Vicente Gajardo, apresentam a grandiosidade dessa geografia e as expressões poéticas e realistas que ela desperta. Uma Cordilheira que, ao mesmo tempo, isola e acolhe o país, mas também continua testemunhando a violência e os reflexos do passado Chileno e o atual contexto que atende aos interesses neoliberais e de um grupo limitado de ricos privilegiados.
O espectador é apresentado à memória afetiva que a Cordilheira dos sonhos representa para os Chilenos; o pertencimento à essa paisagem materna e que, encontra-se abandonada e apropriada por milionários com áreas privadas. Essa memória é evocativa da relação natureza e sociedade, assim como bastante dolorosa em virtude do autoritarismo estabelecido na nação e praticado ao longo dos anos.
É impossível não se emocionar com certa "quebra" visual na narrativa: o belo e o feio. A Cordilheira mãe e o opressor. A liberdade e a ditadura. Diferente de "O botão de pérola" que apresentava uma narrativa visual mais poética embalada pelo elemento água e registros históricos menos brutais, em "A Cordilheira dos Sonhos", logo mais, a não ficção cede espaço para imagens da repressão dos ditadores. Por mais que Patrício Guzmán, com sua voz calma e sincera, traga intimismo e cumplicidade à narrativa, não é fácil passar da beleza da Cordilheira para os registros de violência militar e miséria social.
Em comparação ao documentário antecessor, o doc. perde bastante na expressão poética imagética e desenvolve mais sua faceta de filme-denúncia sobre os horrores da ditadura de Pinochet. Isso se dá em função como Patrício Guzmán roteirizou e orquestrou sua narrativa com o material documental de Pablo Salas.
Pode-se dizer que o doc. é mais cruel nas imagens realistas estabelecendo-se como uma construção cinematográfica híbrida entre o passado e o presente, a história violenta e a imagem "sofisticada" de prédios comerciais e prosperidade para poucos, o silenciamento de vozes na ditadura e o sentimento de abandono e desesperança, a feiúra do ato humano brutal e a magnífica beleza da Cordilheira. São essas nuances narrativas antitéticas que possibilitam refletir sobre como Patrício Guzmán ama o Chile, preocupa-se com sua terra e não perdeu a fé, mas também revive o exílio ao ver que, mesmo quando retorna ao país, a opressão continua.
A montagem do documentário mescla narração de voz do próprio diretor, estabelecendo essa intimidade dele com o país e a observação dessa história, além de imagens muito exclusivas da violência e totalitarismo durante o governo Pinochet. A contribuição dos registros do cineasta Pablo Salas, e do depoimento do escritor Jorge Baradit são essenciais e agregam bastante informação e reflexão crítica ao longa em virtude dos desdobramentos da ditadura para o país. As vozes deles podem ser as vozes de outros Chilenos, então, a relevante dimensão de ouvir todos esses relatos com atenção.
Salas é o cineasta documentarista que tem muitos registros da violência ditatorial e os guarda como um museu de resistência e luta. Sua participação tem algo de fundamental e de trágico, pois ele não deseja sair do Chile e transmite o sentimento do artista que foi abandonado pelo próprio governo. Salas é o reflexo do abandono da cultura do país, algo semelhante ao que está acontecendo no Brasil. Já Baradit é um estudioso da história e da ficção e estabelece uma leitura crítica de como os Chilenos se sentem. Ainda que a opinião dele não seja a de todos, ele representa muitos dos sentimentos e opiniões da esquerda.
De certa forma, não é fácil acompanhar o longa depois de algum avanço da projeção considerando que, sob a perspectiva de uma análise racional da História dos países latino americanos que vivenciaram ditaduras, infelizmente, a sociedade não evoluiu como deveria. Há um retrocesso atual nas lideranças políticas, colocando a democracia da América Latina em risco.
Assim, a História de opressão, autoritarismo e interesse econômicos de um grupo específico de poderosos permanece, e muitos sonhos de cidadãos são frustrados como se a Cordilheira dos sonhos tivesse sido abandonada junto com eles, inclusive, aquela sensação de exílio mesmo morando no próprio país. Entretanto, para o bem, Patrício Guzmán recupera a memória do Chile e as forças através da Cordilheira. Ela é realmente a metáfora de que nem tudo está perdido. É preciso abraçar a esperança.
Fotos e citação do diretor, uma cortesia da assessoria do Festival para imprensa. Divulgação permitida.
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