Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Miguel Arroyo, sociólogo e educador Espanhol e um dos maiores especialistas na pesquisa sobre currículo escolar discorre em sua essencial obra "Currículo, território em disputa" sobre a importante constatação de que o currículo, como norteador, planejador e integrador de conhecimentos, experiências, processos e práticas educacionais é um território em disputa sob diferentes perspectivas que o constroem: social, curricular, político, metodológico, entre outras. Apesar da vastidão de subtemas envolvidos nessa definição, o currículo é todo esse conjunto de teorias e práticas construídas contextual, política e socialmente na escola em todo o processo de ensino-aprendizagem.
João H. Jardim: um dos melhores cineastas documentaristas do Brasil, e presença afetiva na direção de filmes que abordam Escola, Educação e juventudes
Essa definição assume uma importância muito maior para compreender e exercitar a reflexão crítica durante e após o documentário do cineasta Brasileiro João H. Jardim. Presente na Competição Brasileira de longas e médias-metragens do Festival É tudo verdade, "Atravessa a vida"(2020) aborda o cotidiano de alunos do 3º ano do Ensino médio da Escola Estadual Dr. Milton Dortas, localizada no município de Simão Dias no interior do Sergipe, diante da expectativa de prestar o ENEM e ingressar no ensino superior.
O filme expõe os depoimentos de alunos(as) sobre suas subjetividades e realidades locais como a relação com a família, a escolha de carreira, outros temas contexto atual do país como violência, suicídio, mercado de trabalho e outros mais, além da participação de professores e gestor em relatos e provocações em sala de aula.
Embora João H. Jardim desenvolva um longa bastante afetivo, sensível e dialógico , para o público em geral, como Brasileiros de uma nação que não tem investido na Educação da forma que é necessária, compreender o currículo como um território em constante disputa é uma questão de compromisso e luta social. Desde "Pro dia nascer feliz"(2005), um clássico documental que também traz a realidade do sistema escolar, o cineasta tem apresentado um profundo respeito e empatia para abordar o que os jovens pensam e como também são afetados por todo o espectro de problemas da Educação.
E como o currículo se manifesta na obra? Em tudo! Em cada depoimento de alunos, professores e gestor escolar. Em cada problemática da relação do jovem- escola-família que impacta no aprendizado e na formação do(a) educando(a). Em cada falta de estrutura e outras carências do ambiente escolar das populações mais pobres. Em cada dimensão das variadas desigualdades sociais que afetam o desenvolvimento do jovem.
"Atravessa a Vida" é um filme que, de certa forma, atualiza o "Pro dia nascer feliz" em um outro contexto e época. Apesar de cada um ter sua própria identidade e valor como obra única, ambos dialogam entre si. Se no premiado filme de 2005, o cineasta orquestrou um movimento de diálogo com jovens dos sistemas de ensino privado e público, no recente longa, ele opta por realizar um projeto específico em uma escola no Nordeste do país. É um microcosmo que reflete a realista macrovisão das escolas nas periferias.
Desta forma, atualiza-o no sentido de que ambos escutam adolescentes, suas opiniões, histórias e sentimentos sobre seus lugares e missões do mundo, em especial, as incertezas, as vulnerabilidades e as aspirações. Essa inquietação do jovem é um material legítimo e vivo, em uma constante tensão entre o potencial de realização e o medo de fracassar. Também, atualiza-o ao mostrar que a realidade das juventudes Brasileiras das escolas públicas ainda é desafiadora, levando à reflexão de que pouca coisa mudou. O Brasil continua tendo problemas básicos na Educação, tratado com descaso por diversos políticos na condução e melhorias dessa agenda.
Uma boa escolha da direção foi exatamente entrar no universo da sala de aula, corredores e demais espaços escolares. É um currículo em movimento e realista, tanto do ponto de vista físico como representativo, continuamente alimentado pelos depoimentos dos jovens. Sob a perspectiva da qualidade da direção, João H. Jardim acerta bastante ao adentrar sua câmera em algumas aulas práticas que discutiam História do Brasil e também a questão da identidade da juventude. Podemos ver como os jovens se colocam nas discussões, o que pensam, como reagem e sentem.
O documentário tem um excelente time que trabalhou muito bem junto, destacando a direção e a edição, duas questões que foram essenciais para esse atravessamento da vida do jovem. Para quem já trabalhou com adolescentes, deve saber bem que o jovem é autêntico no que fala. Ele(a) espera a confiança e o respeito do adulto, e nem sempre todas as pessoas têm esse perfil dialógico com o adolescente.
Extrair essa sensibilidade do jovem exige um exercício de empatia realmente autêntico e realista. Ao lado do cineasta, a pesquisadora e Assistente de direção Maria Carolina e a montadora Fernanda Rondon conseguiram extrair essa sensibilidade no resultado final, com alguns momentos bastante comoventes como o filho que se preocupa com o futuro da mãe, uma filha que tem um pai ausente e uma outra jovem que já tentou suicídio. Todas questões reais e contemporâneas nas vivências e experiências dos jovens que estão diretamente presentes no espaço escolar porque, afinal , a escola é o primeiro espaço de socialização, convivência e pertencimento do ser humano.
A beleza desse documentário é sua autenticidade em dar voz e um espaço de subjetivação para os jovens. Eles são protagonistas reais, diretos e participativos. Indiretamente, o público pode observar que os problemas na Educação estão ali, bem claros em cena , mas outro grande acerto do diretor, um exímio e sensível entrevistador e muito apaixonado por esse tema, é voltar-se para a escuta do jovem. João H. Jardim escuta as juventudes, uma questão que nem sempre acontece pelo cidadão comum no Brasil.
Na maioria das vezes, há pessoas, de pais a mestres, de políticos a empresas, que não escutam verdadeiramente essas gerações futuras. Grande parte do tempo, essa é uma lacuna que começa na infância, com pessoas muito individualistas e ocupadas para dar atenção às crianças e jovens. Muitos adultos não têm paciência com os adolescentes e acham que, ou são ociosos (como uma " geração nem estuda e nem trabalha - popularmente dita como "Nem nem") ou que dramatizam demais sem necessidade. A questão que não deve perdida de vista é: Os jovens precisam ser escutados, ser reconhecidos como cidadãos com direitos e participar da vida coletiva.
A verdade é que todos fomos jovens um dia. É uma miscelânea de medos, anseios, paixões e potências, então, as juventudes precisam ser ouvidas e desenvolvidas em suas potencialidades, aprender junto com crianças e adultos, participar do exercício da cidadania, ter oportunidades para construir seus projetos e realizar seus sonhos. Nesse aspecto, o documentário tem muita honestidade ao mostrar que o jovem está em formação e transita entre as inquietações e a potência de transformação.
Através do bom exemplo e de uma incrível capacidade de dar e receber afetos, João H Jardim demonstra a importância de escutar o jovem e contribuir com sua formação. É um filme necessário não apenas para educadores e profissionais da Educação em geral, mas é um filme cheio de humanidade para o Brasileiro. É sobre histórias de vidas que podem ser transformadas com e pela Educação. É um filme belo, afetivo e potente.
Assista ao filme on-line e gratuito no Festival hoje, 25/09/20 às 21 h e em 26/09/20 às 15 h, nesse link.
Fotos do filme, uma cortesia da assessoria de imprensa do festival. Divulgação permitida.
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