Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Realizado pelo documentarista Argentino Darío Doria, Vicenta (2020) surpreende pelo híbrido processo de criação em torno da controversa relação entre abuso sexual e aborto. Desenvolvido como uma fusão de Cinema de Animação com narrativa documental, o longa apresenta um caso real da Sra. Vicenta e sua filha, cidadãs contra o Estado Argentino durante uma longa batalha judicial.
O caso verídico torna-se mais delicado quando relatam que a filha de Sra. Vicenta tem deficiência intelectual severa e incapacitante e foi abusada sexualmente pelo tio. Partindo dessa trágica ocorrência, independente de quem defende ou não o aborto, por razões óbvias e humanizadas, caberia à família decidir sobre a interrupção da gravidez ou não. A família está destroçada por uma violência sexual e doméstica praticada por uma pessoa próxima e revela que a menor não teria condições de criar uma criança. Essa decisão seria ainda mais destrutiva e traumatizante para todos, porém, para o Estado Argentino, o aborto legal não poderia ser liberado.
"Não foi o ódio nem a indignação que me levou a fazer esse filme. Se trabalhei mais de cinco anos nele, foi por admiração pela luta gigantesca e vitoriosa dela. Ele quer ser uma celebração, um pequeno tributo a essa grande mulher."
O desenvolvimento do documentário é de um cuidado ímpar e diferenciado. Ele não se aparta dos registros documentais como visibilidade do caso nas esferas familiar, midiática e jurídica intercalada no storytelling que, muito bem escrito, revela detalhes relevantes que vão desde a lentidão da lei até a participação de mulheres no apoio à Sra. Vicenta. Mas, é visível que a qualidade da produção advém de um corajoso híbrido trabalho com a Animação, que se constitui com uma criação minuciosa de bonecos em stop motion.
Vicenta é uma produção fora da curva. Se aproxima bastante do bom Cinema animado em virtudes visuais, mas os registros históricos preservam o documentário. Os personagens representados em bonecos não se movem e, nesse sentido, o poder da palavra narrada tem uma importância chave para a compreensão da realidade. No efeito de locução de voz, o documentário inclina-se mais à rigidez e racionalidade jornalística na contação, sem muita emoção e ênfase de diálogos na narração, assim, aproxima-se de uma narração documental que traz o elemento de suspense. Pouco a pouco, revela os desdobramentos.
Por outro lado, a técnica empregada na criação dos bonecos mantem uma forte autoria do artista, da direção de Arte e da intenção dramática do documentário. Os olhos dos bonecos estão continuamente entristecidos, observadores e pensativos. Esse olhar distante e sério é uma marca registrada como o que denuncia, testemunha e observa esse drama, inconformado com a procrastinação e descaso do Estado. Um olhar cansado que espera pela justiça.
Vicenta se situa como uma obra necessária para reflexão sobre a liberalidade de aborto para casos de estupro de vulneráveis e de maiores, assim como uma forma de conhecer um caso real que se arrastou pelos tribunais por mais de 8 anos, no qual o Estado foi negligente em diferentes momentos e adotou uma postura rígida e antiprofissional, dessa forma, não dando a devida importância às especificidades da história e à aplicação da justiça.
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