Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Muito já foi narrado no Cinema a respeito de presidiários no corredor da morte, na sua maioria, obras dramáticas nas quais advogados de defesa e famílias lutam para provar a inocência do condenado, outras com maior ênfase nas últimas horas do sentenciado, na busca pela verdade ou algum roteiro que opta pela redenção. Os Estados Unidos tem um dos sistemas penais mais rígidos com relação à aplicação de condenações que levam ao fim da vida, contexto polêmico que desperta o interesse de realizadores na relação da realidade com as emoções dos personagens e o sistema prisional.
Nos últimos 5 anos têm aumentado o número de filmes ficcionais e não ficcionais que questionam a legitimidade das sentenças desse sistema e utilizam uma abordagem mais independente e investigativa assim como subjetiva , entre eles: o documentário a 13ª emenda (13th, 2016) de Ava DuVernay, Justiça em Chamas (Trial by Fire, 2018) de Edward Zwick e Luta por Justiça (Just Mercy, 2019) para citar apenas alguns exemplos de ótimas produções. A mais recente, Clemência (Clemency, 2019) estrelado por Alfre Woodard, apresenta um excelente ponto de partida: o drama da diretora do presídio, Bernardine Williams, interpretada de maneira crível por Woodard.
A personagem representa o dilema entre fazer bem o seu ofício, atendendo à sua ética do trabalho e compromisso com aplicação da lei, e a sua subjetividade com o peso desse papel. Como acontece com juízes e médicos, por exemplo, ainda que determinadas funções sociais tenham o poder entre a vida e a morte, decidindo o destino de outras pessoas, nem tudo é arbitrário. Determinada decisão é tomada após algum processo ou procedimento, assim, nesse filme, Bernardine enfrenta o conflito natural de profissionais que têm esse tipo de poder e/ou a responsabilidade de execução após alguma decisão formal. O resultado culmina em diferentes sentimentos e situações que assombram suas mentes.
Clemência é um bom drama independente dirigido por Chinonye Chukwu, uma cineasta Nigeriana que vem a agregar talento ao pool de diretores(as) negros(as) que se voltam às realidades de homens e mulheres da comunidade negra. Tanto Alfre Woodard como Aldis Hodge são excelentes atores que entregam performances críveis, dessa forma, ajudam o público a se voltar ao tema e às controvérsias que existem na criminalização da população negra nos Estados Unidos.
A cineasta se inspirou no caso Troy Davis para a elaboração do roteiro e não reduziu seu trabalho a um drama clássico sobre a temática. Como uma autora independente, ela preserva espontaneidade na direção e o mal estar da personagem central. Esse equilíbrio na produção deu-lhe o prêmio do Grande Júri do Festival de Sundance de 2019.
Apesar da universalidade do filme, o roteiro e direção reúnem elementos que não têm como objetivo dar conta e aprofundar as múltiplas facetas da complexa realidade do sistema prisional e do caso Troy Davis, logo, o longa não exerce uma militância mais intensa e pautada no documental como os de Ava Duvernay. Prioritariamente, ele preserva o drama de uma mulher e a relação com seu polêmico trabalho. Essa escolha é positiva pois deixa ao público a liberdade de construir sua própria subjetividade com o tema, observando o que essa mulher sente e não consegue expressar em ações.
Com isso, as virtudes de Clemência são o recorte narrativo e a interpretação de Alfre Woodard. Cabe ressaltar que esses aspectos centrais não ocultam as complexidades das vidas negras em um sistema prisional. Infelizmente, esse sistema também age com arbitrariedade e interesses econômicos, sociais e políticos em diversos cenários. Basta assistir ao documentário 13º Emenda e a série When they see us para analisar essa questão.
Nesse sentido, é preciso reconhecer a trajetória profissional da atriz e as nuances dramáticas desse papel. Ela é uma atriz bem conhecida no Cinema, TV e em produções de baixo e médio orçamento, na maioria. Na década de 90, ela realizou trabalhos de renome como The piano lesson e Miss Ever's boy, mais recentemente participou de produções mainstream como Pantera Negra (Marvel), a série Luke Cage (Netflix), O Rei Leão (Disney). Com maior abertura do Cinema aos profissionais negros, esse é um exemplo de filme que coopera para o público reconhecer atrizes e atores que precisam de maiores oportunidades na tela grande mesmo após longos anos de carreira.
Com relação ao seu personagem e atuação, Alfre Woodard tem uma expressividade única para um papel difícil, duro e devastador. É uma mulher em conflito por mais que saiba que aplicará a execução da injeção letal. De certa forma, a clemência não se reserva apenas a sentir que o sentenciado é um ser humano, mas a clemência é sobre Bernardine. Ela também precisa se perdoar e reconhecer suas vulnerabilidades.
Em várias partes do longa, ela luta contra essas emoções pois seu ofício representa a autoridade, a disciplina, a ordem e a execução. Ela é parte de um sistema punitivo que é retroalimentado continuamente por interesses de diferentes grupos sociais, políticos e midiáticos, a maioria, de natureza hegemônica. Sendo uma mulher negra, esse contexto ganha uma dimensão bem particular e subjetiva para Bernardine e situa-se em um bom filme para analisar os impactos dessas realidades sociais nas subjetividades dos sujeitos.
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