Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação
Meu Anjo (Gueule d'ange, 2018) é o primeiro longa-metragem da diretora e roteirista Vanessa Filho, indicado ao Un Certain Regard do Festival de Cannes 2018, competição que tem como proposta trazer um olhar de atenção e reconhecimento às produções que convergem para histórias diferenciadas e não tradicionais.
Para a adaptação de seu primeiro filme, Vanessa Filho contou com a parceria de Diastème, diretor e roteirista que tem experiência em roteiros de produções Francesas. Foi uma escolha bem acertada para os diálogos considerando a natureza familiar da obra que, neste caso, aborda a relação traumática entre uma mãe ausente e uma filha com uma infância desassistida. Em seu último longa, Julho Agosto (Juillet Août, 2016), Diastème enfoca o ambiente e as relações entre pais e adolescentes e as intempéries do amor e do amadurecimento.
Marion Cotillard atua como a mãe alcoólatra que está mais perdida que a filha. Seu cotidiano é desprovido de qualquer responsabilidade. Ela não cuida de si mesma e nem da criança. Não tem um trabalho e nem dinheiro para despesas básicas. Vive tomando bebidas alcoólicas como se fossem água, se envolve com homens que a usam sexualmente e não leva a sério nem aquele que aparentemente poderia tê-la amado e respeitado. A sequência do casamento apresenta quem é Marlène de uma forma ridicularizada e amargamente triste, assim, antecipa ao público quem é a personagem.
As primeiras cenas geram bastante mal estar porque se trata de um filme sobre negligência à infância. A pequena Elli, interpretada de maneira madura e crível pela talentosa Ayline Aksoy-Etaix, se comporta como uma mini-adulta, evidenciando uma infância roubada, negligenciada, abandonada. Há claramente uma inversão de valores, na qual a mãe age como uma criança e a filha age como uma adulta. A mais dolorosa situação como expectador, pelo menos, que pesa na experiência é enfrentar as cenas nas quais a jovem Elli começa a tomar gosto pelo alcóol. Como ocorrido com muitas crianças criadas por pais alcóolatras, ela começa a reproduzir o vício da mãe.
Vanessa Filho realizou um filme difícil e desafiador para quem é novato (a) na direção de longas. Na verdade, ela se arriscou em um tema absurdamente pesado e doloroso. Ela se saiu bem, em grande parte, porque contou com uma atriz experiente como Marion Cotillard, que tem uma forte presença e competência em cena, e uma atriz mirim que captou exatamente esse efeito traumático da adultização, do abandono, da solidão. O mérito de Vanessa é muito mais a direção de atores, especialmente, o trabalho com Alyline Aksoy-Etaix.
A execução desse roteiro se mostra como desafiadora pois a história não conta com diferenciados coadjuvantes que apoiam as atuações protagonistas. Também há uma considerável lacuna de espaços vazios deixados por essa mãe, tanto no tempo cronológico como no tempo psicológico da narrativa. Ela simplesmente some do mapa e muito pouco acontece em cena em termos de desenvolvimento das relações. Com isso, o peso da responsabilidade pelo filme recai sobre a criança, evidência que deixa a narrativa mais cruel e ressalta que a vida de Elli é realmente pesada demais.
Na maioria das cenas, a irresponsabilidade de Marlène esvazia o próprio papel de mãe. Ela é ausente e nada pode ser feito a curto prazo, afinal, onde está essa mulher? Cabe à pequena Elli vagar pelo bairro, angustiada pela ausência da mãe e de um pai desconhecido, sofrendo bullying na escola e transferindo seu afeto para o desconhecido mergulhador Julio (Alban Lenoir).
Sua amizade com o misterioso Julio (Alban Lenoir) preenche uma parte do filme que, apesar de perturbadora e arriscada, resulta como necessária para completar esses espaços vazios das ausências familiares. Esse tempo de interação com Julio evita que o filme fique totalmente vazio com uma criança sozinha. Contudo, em vários momentos, ver um homem adulto sedutor e sem camisa e uma criança de 9 anos sozinha com ele provoca um medo danado de haver alguma cena de pedofilia. Neste caso, Elli transfere afeto a ele, mas estranhamente, em alguns momentos parece que ela flerta como se imitasse Marlène.
Essa amizade de Elli com Julio apela bastante para o registro ficcional pois, uma criança de 9 anos que entra no carro de um desconhecido, muito provavelmente, não teria a mesma sorte de encontrar um homem íntegro. Ela correria o risco de ser abusada sexualmente, sequestrada e vendida para uma quadrilha internacional, assim, o roteiro transforma essa nova amizade de Elli como algo positivo. Por outro lado, observar essa amizade entre uma criança e um desconhecido só intensifica o fato de que Marlène é realmente uma mãe ausente e irresponsável.
Meu Anjo é um filme difícil de assistir em virtude da negligência em cena. O roteiro não oferece muitas saídas e discussões, assim, o espectador se vê ilhado em uma história de disfuncionalidade familiar. No mais, o roteiro propõe um desfecho fácil, até mesmo clichê. Por mais que o Cinema seja um campo aberto à observação, crítica e reflexão humana, nunca é fácil ver cenas nas quais a criança tem sua infância roubada, drama que exigirá dela um maior esforço na ressignificação da vida, dos sentimentos e relações.
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