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Por Cristiane Costa
Muitos diretores começaram seu trabalho com Cinema através da Cinefilia, a paixão intensa por essa Arte. É natural que, após um determinado período de carreira, paixões cinéfilas como o apego à determinado filme , diretor(a), ator ou atriz, leve um cineasta a dedicar parte de sua vida à filmagem de um obra audiovisual. Tal dedicação apaixonante é capaz de viabilizar até mesmo o que parecia impossível. É o que aconteceu com Mirko Stopar, documentarista de Chamas de Nitrato (Llamas de Nitrato, 2014), uma coprodução Argentina/ Noruega e obra baseada na icônica atriz de teatro, Renée Falconetti ( conhecida como Maria Falconetti), que protagonizou uma das personagens mais fascinantes da História do Cinema: a Joana D'Arc de Carl Theodor Dreyer. Stopar levou 6 anos para fazer o filme, tomado pela sua fascinação pela atriz mas também pelo desafio de reconstruir um documentário com poucos vestígios sobre Falconetti.
O que aconteceu com a icônica Falconetti, a Joana D'Arc de Dreyer?
O longa tem uma curta duração ( apenas 62 minutos), evidência que reflete as dificuldades para conseguir o material de pesquisa, porém o diretor foi bastante habilidoso e dedicado para a construção da narrativa e, portanto, realizou um belo trabalho de edição e inventividade com recursos metalinguísticos. Misturou elementos ficcionais de reconstituição de importantes eventos no Cinema e no Teatro com elementos verídicos e históricos como os depoimentos da filha de Falconetti, Hèlene, e do diretor Dreyer, assim como de Gabriele Mistral, poetisa Chilena, que conhecia o círculo de amizades da atriz quando ela esteve na América Latina (Brasil e Argentina), entre outros.
Com um enfoque no único filme realizado pela atriz: "O Martírio de Joana D'Arc" e seus bastidores, o longa antecipa a suposta maldição do filme, cujo original se perdeu, foi encontrado em um hospital psiquiátrico na Noruega no começo dos anos 80 e é a atual cópia que está em distribuição. O longa também joga com a figura sádica, introspectiva e demoníaca do genial Carl Theodor Dreyer, conhecido como um diretor cujos métodos rígidos e extremistas levavam o elenco ao limite. Durante o longa, há menções dramáticas do que ele era capaz de fazer com Falconetti, como por exemplo, esperar longas horas para filmar uma cena, e o quanto ela sofreu no filme que a consagrou no Cinema. De maneira alguma, Chamas de Nitrato descredibiliza a reputação de Dreyer, tanto que o filme é o fio condutor; o documentário apenas bebe da fonte das referências presentes na História do Cinema e de como, para o bem ou para o mal, a parceria entre Falconetti e Dreyer foi um encontro de duas mentes geniais, dois talentos incríveis, inesquecíveis.
Dreyer: um dos diretores com fama de metódico e sádico.
A genialidade por um preço alto.
Chamas de Nitrato é um documentário que passa pelos olhos com muita velocidade devido ao tempo de projeção, porém permanece na mente por uns dias. É envolvente, dramático, misterioso e, ao mesmo tempo, encantador pela figura carismática de Falconetti. Esse filme se faz presente porque é um documentário que desenvolve certa gratidão e piedade pela atriz. A todo o momento, podemos realizar perguntas recorrentes que normalmente fazemos quando vemos que grandes divas e musos do Cinema morreram falidos e sozinhos: Por que o destino de Falconetti não poderia ter sido melhor? Ter trabalhado com Dreyer e tido uma primeira e única experiência no Cinema foi realmente positivo para ela? |Ou tê-lo conhecido foi o começo de sua descida a um inferno muito particular? Como ela morreu? Quem estava a seu lado? Por que tantos talentos do Cinema são abandonados ao infortúnio no fim de suas carreiras, esquecidos por aqueles que antes os aplaudiam? O documentário cumpre o papel de levar o público a velhas e novas perguntas, a convidar cada espectador a se interessar pela emblemática Joana D'Arc "Falconetti", que tragicamente morreu na miséria, esquecida e em condições misteriosas.
Esse longa é uma grande homenagem de Mirko Stopar à Falconetti que até os seus gaps, como documentário, são perdoados. Uma de suas lacunas é essa ausência de mais registros: entrevistas, depoimentos, cartas, imagens da atriz. Para a alegria dos cinéfilos e público em geral, o documentarista realizou um esforço extraordinário e usou a criatividade, muito inspirado pelo Cinema Clássico: muitos planos são recriados, com o primor e a nostalgia da fotografia preto e branco, uso de pouca luz, sombras e artifícios estéticos do Cinema mudo e do drama noir. Consequentemente, temos à vista um documentário que reconstrói a Paris de 1920 com o auge do teatro na carreira da atriz, o drama de Falconetti durante as filmagens como "Joana D'Arc", seus demônios, vulnerabilidades e dramas pessoais e a solidão , abandono e decadência na Buenos Aires de 1940.
Falconetti parece predestinada a ser uma atriz-mito, a ser como aquelas mulheres que passam pela tela como um raio e somem na escuridão, ainda que presentes na memória. Ainda que o filme provoque ainda mais curiosidade considerando que pouco material é documental, ele traz elementos interessantes por ser um híbrido audiovisual, essa mistura nostálgica de depoimentos reais com recriações da trajetória da protagonista, essa incompletude biográfica e mistério de quem era a atriz e aspectos que despertam a pesquisa, a leitura, a revisitação de trabalhos de Falconetti e Dreyer.
Ficha técnica do filme no Fenris Film
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Cristiane Costa, MaDame Lumière