Acompanhe uma seleção de documentários no MaDame Lumière
Por Cristiane Costa
Caminho de volta é um documentário que nasce de uma ideia bem contemporânea: a de brasileiros que querem retornar ao Brasil após anos vivendo no exterior. Como lidar com a questão de identidade? Como tomar a decisão de deixar anos de vivências e conforto no país que os adotou e voltar às raízes? Como enfrentar as dificuldades e consequências dessa decisão? Dentre os documentários Brasileiros que estão no 20º Festival Tudo é verdade, esse projeto é um dos mais intimistas e atuais, tanto pela forma mais espontânea e realista que os documentaristas José Joffily e Pedro Rossi optam na direção como quanto à ideia embrionária do longa e a competente montagem de Jordana Berg.
A história tem dois personagens Brasileiros reais, que autorizam a gravação de seus cotidianos nessa realização. André Câmara é um fotógrafo independente de 45 anos que vive em Londres há mais de 20 anos. Tem 4 filhos, sendo que vive com a nova companheira e o filho mais novo. André deseja encontrar um trabalho no Brasil e, com o tempo, montar as duas bases familiares sólidas nos países. Maria do Socorro tem 87 anos e vive nos Estados Unidos com o filho Fernando há 25 anos. Após seu filho encontrar uma esposa, um desejo que Maria tinha há anos, ela decide voltar ao Brasil. Ambos querem esse retorno, reatar os vínculos, começar de novo. As saudades e o desejo do caminho de volta são claros, fato que evidencia que, por mais que os anos passem e estejam em um país desenvolvido, o Brasil ainda é uma rota de fuga, um porto seguro ou um destino necessário para a retomada ou a preservação da identidade.
Esse documentário começa com um grande acerto: a escolha das personagens e o perfil de cada um, o que possibilita perceber algumas vantagens e desvantagens, facilidades e dificuldades de retornar ao Brasil em cada situação. Sendo André um fotógrafo freelance, com um background de reconhecida carreira, mas, atualmente em dificuldades financeiras e profissionais, a história dele chama atenção. Considerando que a companheira assume consideravelmente o orçamento familiar e está sustentando a casa, é perceptível que ele simboliza uma realidade mais complexa para retornar ao Brasil e tem o perfil compatível a outros Brasileiros que estão em situação semelhante: os economicamente ativos e na luta diária para ganhar dinheiro e manter uma família. Ele tem o desafio de conhecer ou se atualizar a um mercado de trabalho Brasileiro que ele não é atuante e que precisa dominá-lo para uma potencial estabilidade. Somado a isso, ele tem vários filhos e sua decisão afeta diretamente a vida deles, que são crianças e adolescentes, além de sua parceira. Fica nítido que André, como pai de família e, mesmo tendo o apoio de uma família afetuosa no Brasil, é uma personagem real em claro conflito. Sua história é a que cria mais espaços para a reflexão.
Por outro lado, Maria do Socorro, uma senhora bastante carismática e bem humorada, tem a experiência e a generosidade de um mãe. Ela abriu mão da própria vida para viver com o filho. Torceu por sua vitória até ele obter cidadania Americana e se estabelecer em um novo relacionamento afetivo. É interessante observar que ela não fala inglês e é uma dona de casa, ou seja, ela se adaptou a uma rotina entediante por amor ao filho e, por mais que ela tenha a companhia de André e goste dos USA, ela é o retrato de uma mulher que continua estrangeira nos USA, de uma velhice solitária sem a presença dos netos e dos amigos Brasileiros. Como tem filhos criados, seu retorno ao país é mais prático, porém leva-nos à reflexão: Como é para uma senhora de 87 anos retornar ao Brasil após 25 anos? Maria leva o retorno com bom humor e vontade, porém o país não é mais o mesmo e, em algum momento, tanto ela como André vão sentir o impacto da realidade.
O filme não se preocupa em impor artifícios narrativos como entrevistas mais direcionadas ou uso de outros variados personagens reais para moldar como André e Maria se sentem com a ideia de voltar ao Brasil. O que vem à cena é resultado do trabalho de câmera na mão ou deixada na casa de cada personagem e da montagem final. Isso tem pros e contras.
É principal pró é a vida como ela é. Chega a ser um experimento de entrar na intimidade e ver o que vai rolar, mesmo com os riscos de deixar o público com vontade de saber efetivamente o que essas pessoas sentem sobre voltar ao Brasil, ou seja, permanece o desejo de cutucar mais quem eles são, o que pensam sobre cada país, se estão cientes da decisão e o porquê, o que as outras pessoas de seu convívio pensam, quais serão os primeiros estranhamentos. Como André e Maria têm carisma, o documentário fica mais intimista e cria uma conexão fácil. É como a história de um primo ou de uma tia distante que vem à tona, resultando em um material realista da bela experiência humana e com uma ótima edição.
Por outro lado, o principal contra está na falta de maiores conflitos (inter)pessoais em cena. Como o tema é contemporâneo e rico e há diversos Brasileiros no exterior, outros poderiam ter rotinas intensas e conversas mais polêmicas. Obviamente é algo que não pode ser previsto em um documentário que entra na casa dos outros, mas outras dinâmicas de exploração dessa realidade poderiam ter sido aplicadas. André é o protagonista que tinha mais condições de expor o conflito, mas é compreensível que o dia a dia dele chegava a ser entediante pelo seu momento atual, principalmente porque não tinha uma rotina variada de atividades ou um corrente e dinâmico emprego, condição que criaria espaço a variadas situações de descoberta de quem é ele, afinal. Pouco se mostra do convívio com os filhos mais velhos, por exemplo. Por que não explorá-lo?
O melhor momento vem exatamente do casal: quando ele discute com a mulher. Não pela pequena briga e a corriqueira curiosidade do público em ver o "circo pegar fogo", mas porque ali ela disse coisas bastante relevantes e de impacto com relação à realidade de uma família nesse contexto. Disse à André o que todo o homem deve ouvir para colocar os "pés no chão". Foi um desabafo corajoso de uma mãe de família, principalmente em um mundo que ainda é bastante patriarcal e machista, que age como se a decisão de um homem não impactasse a vida de sua esposa e filhos.
Momentos com o da discussão do casal fazem parte do que é a realidade do "Caminho de volta". Foi um excelente momento documental. A ideia é tão interessante que os próprios documentaristas deveriam criar outros documentários derivados desse projeto. Há muito a ser explorado sobre as idas e vindas de Brasileiros no exterior. Na verdade, muitas pessoas têm vontade de sair e voltar ao Brasil, divididos entre o desejo de mudança, a decepção com os contextos político, econômico e social, as saudades da família e dos amigos, o sonho de uma vida com melhor estabilidade financeira e com qualidade de vida, porém há uma diferença entre o querer, o ser e o ter. Colocar para fora os dilemas em uma discussão é o que enriquece a maturação desse tema.
0 comentários:
Caro (a) leitor(a)
Obrigada pelo seu interesse em comentar no MaDame Lumiére. Sua participação é muito importante para trocarmos percepções e opiniões sobre a fascinante Sétima Arte.
Madame Lumière é um blog engajado e democrático, logo você é livre para elogiar ou criticar o filme assim como qualquer comentário dentro do assunto cinema e audiovisual.
No entanto, não serão aprovadas mensagens que insultem, difamem ou desrespeitem a autora do blog assim como qualquer ataque pessoal ofensivo a leitores do blog e suas opiniões. Também não serão aceitos comentários com propósitos propagandistas, obscenos, persecutórios, racistas, etc.
Caso não concorde com a opinião cinéfila de alguém, saiba como respondê-la educadamente, de forma a todos aprenderem juntos com esta magnífica arte. Opiniões distintas são bem vindas e enriquecem a discussão.
Saudações cinéfilas,
Cristiane Costa, MaDame Lumière