Quando um cineasta se arrisca em um terreno no qual ele não é experiente e sai da zona de conforto, o mínimo que deve ser feito pelo espectador é observar e ponderar seus riscos e acertos e a experiência cinematográfica significativa com a mudança. Conhecido por dramas humanos naturalistas, o diretor Joachim Trier em parceria com o co-roteirista Eskil Vogt (de "Blind") realizaram um giro de 180º graus na realização de "Thelma", thriller sobrenatural ambientado em Oslo e indicado pela Noruega ao Oscar 2018. Inspirado por referências como Hitchcock, Brian de Palma e filmes italianos do gênero terror (giallo), Trier foge da cinematografia que o tornou conhecido, contudo, não deixa de centralizar a vulnerabilidade do ser humano no seio das relações familiares e afetivas.
" Ao fazer um thriller sobrenatural, pensei: "O que posso trazer para a mesa que é
esperançoso? (Joachim Trier)
Interpretada pela jovem revelação Eili Harboe, a protagonista Thelma tem a híbrida personificação da garota de educação rígida mas também ansiosa pelas oportunidades de aceitação social e descobertas que a faculdade traz. O filme é baseado em um rito de maturidade com o desabrochar do primeiro amor, o drama do ciclo para a vida adulta com repressão, desejos e sexualidade e enfrentamento dos pais assim como uma série de fenômenos sobrenaturais e psicossomáticos como as convulsões sofridas pela personagem e todo o processo ansiolítico de se libertar da rigidez familiar e se entregar ao amor por outra mulher. Assim, Thelma é a dolorosa jornada de uma jovem que precisa amadurecer e lidar com as turbulentas emoções e difíceis decisões em uma sociedade norueguesa ainda tradicional.
Como argumento, a história de Thelma não é nada diferente do que já se viu em algum lugar do Cinema, quando jovens passam por ritos de passagem e a angústia do amadurecimento. A diferença aqui é que o filme é o mais recente "ame ou odeie" entre os lançamentos do ano. Ao tomar para si o risco de unir o drama real com alegorias do horror e a tradição de contos primitivos nórdicos, Trier sai muito do lugar comum que o consagrou, além de não ser especialista neste gênero. Desta forma, o longa exige uma postura flexível do espectador que aprendeu a gostar de Trier a partir de ótimos dramas como "Oslo 31 de Agosto" e "Mais forte que bombas". De fato, as primeiras sequências de Thelma levam a pensar : "Que inferno é esse? O que ele está fazendo com sua carreira?". Depois é possível dar algum crédito ao seu esforço.
Thelma tem sua melhor performance muito mais na atuação de Eili Harboe que transita bem entre a vulnerabilidade, a ingenuidade e a força. Seu papel é tão difícil que dificilmente qualquer atriz o faria bem, assim, o filme foge consideravelmente do desastre por causa de Harboe, que é um rosto mais fresco no cinema e é perceptível sua entrega ao trabalho por inteiro, principalmente nas cenas de convulsões psicológicas não paternas, na sintonia que estabelece com seu pai Trond (Henrik Rafaelsen) e nos delicadas interações com seu novo amor Anja (Kaya Wilkins). Para o bem do cinema contemporâneo, ela é uma atriz que pode ser convidada para outros trabalhos para expansão de sua carreira além da Noruega.
Ainda que o filme tenha altos e baixos na execução, Thelma é uma personagem interessante que tem de tudo para criar uma identificação com os estados repressivos que mulheres carregam por anos, seja pela educação tradicional, seja pelo medo de encarar os próprios desejos, preferências e sonhos. Embora os roteiristas detenham-se muito ao aspecto sexual e afetivo dela e seu envolvimento amoroso com Anja e deixam de desenvolver outras camadas da narrativa, a protagonista é muito mais que isso: é uma representação do ser primitivo desafiado a encarar o seu destino. Por conta disso, o longa tem contornos que levam ao resgate das referências pagãs, das bruxas, uma oposição ao Cristianismo adotado pela família. É um filme feminino bastante obscuro capaz de despertar rejeição já que ele se dispõe a mostrar pulsões que não são fáceis de encarar.
Com igual importância, Thelma tem traços psicológicos de uma jovem que é estranha dentro do lar, cujo passado é revelado mais adiante e o porquê deste distanciamento entre ela e sua mãe Unni, interpretada pela excelente Ellen Dorrit Petersen. Mesmo que seus pais a controlem até mais por questões morais, nitidamente ela é solitária e inadequada a este mundo tradicional. Unni e Trond não confiam nem mesmo na filha, o que coopera para intensificar o quão estranha é esta relação. Deste modo, Anja é como sua passagem para a libertação. A escolha por um amor homossexual no roteiro vem a contrapor a tradicional sociedade e é um caminho óbvio na concepção de história para colocar a personagem a enfrentar os seus próprios preconceitos, assim como um gatilho para todo o mal estar que ela precisa superar.
Sob a perspectiva da execução narrativa, em vários momentos, o roteiro se perde em cenas que, ao priorizarem o estranhamento e as manifestações da natureza como pássaros, cobras e a natureza circundante, nem sempre conseguem deixar claro a função relevante de tais elementos na cena. Inclusive, há cenas entre Thelma e Anja que parecem mais um fetiche lésbico do diretor do que propriamente uma exploração da mise en scène e da relação entre as personagens, além do número elevado de convulsões, cansativo e nem sempre bem contextualizado. O longa também abandona a oportunidade de criar uma densidade maior na relação entre pais e a filha aproveitando a situação do passado que tanto traumatizou a família, e o desfecho é fácil e morno demais considerando a intensidade do desenvolvimento.
Todos esses riscos fizeram parte da experiência de um diretor que não é um homem do suspense sobrenatural, porém, no geral, o filme tem significado claro. Acima de tudo, Thelma é um intenso drama humano que usa elementos do horror. O equilíbrio entre o real e o imaginário, o físico e o somático, a repressão e a libertação, o padrão social e o primitivo, o amor e o medo de amar ganha uma dimensão pulsante que facilmente pode ser comparada às experiências de qualquer um. Quem nunca viu seu físico desabar quando o emocional perdeu os alicerces? Quem nunca teve medo e ansiedade e prostou-se sem forças para enfrentar os desafios? Quem nunca teve vontade de tomar uma decisão completamente inaceitável em seu meio social e familiar? Essas emoções e desejos são recorrentes, o que os distingue na experiência humana é como se manifestam e podem ser representados no cinema.
Neste sentido, quem julgar o filme apenas pelos predicativos do gênero horror, terá mais chances de se frustrar com as falhas. Joachim Trier arriscou bastante no thriller sobrenatural, contudo, o que está debaixo da superfície do longa continua real e palpável, ele permanece o mesmo diretor e seu serviço é favorável a mostrar os profundos dramas existenciais.
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