Por Cristiane Costa, Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação.
Há poucos filmes que verdadeiramente são predestinados a encantar resultando na celebração e no encerramento de uma vida. Como pequenas jóias com grandes significados, eles surgem em uma caixinha de surpresas, inesperados e tocantes em suas sutilezas e iluminam a experiência cinematográfica com valiosas reflexões que surpreendem pelo inestimável valor. Assim é "Lucky" (2016) o derradeiro filme do icônico Harry Dean Stanton, falecido em setembro de 2017, sua aparição ressalta ainda mais o ator respeitável do cinema independente que ele representa e como ele contribuiu para este nicho.
Trabalhou com cineastas renomados como David Lynch (O império do sonhos e Twin Peaks), Wim Wenders (Paris, Texas), Ridley Scott (Alien - o oitavo passageiro), Francis Ford Coppola (O poderoso chefão II), Martin Scorsese (A última tentação de Cristo), entre outros. Mas em Lucky, ele tem um aura diferente. É como se ele tivesse reunido todos os outros personagens e sua experiência, desafiado o tempo e celebrado a eternidade do Cinema. Neste sentido, os sortudos somos nós, cinéfilos e espectadores em geral, pois é uma honra se despedir de Stanton ao contemplar essa magnífica atuação. Gentil e nobre como um até logo de quem não será esquecido.
Discorrer sobre Lucky em uma crítica é muito pouco diante da magnitude e das possibilidades acerca da obra. É o tipo de filme que não cabe na escrita, deve ser levado à vida, para ver e rever. O longa tem uma honestidade extraordinária a ponto de mostrar, como uma profética despedida, o adeus de Harry Dean Stanton de uma forma magnífica e assustadoramente impactante, ressaltando o que o tornou tão único no Cinema. Uma atuação crível com todas as qualidades que o consagrou nos anos 80 ao interpretar Travis Henderson em Paris, Texas, uma das suas mais precisas e inesquecíveis atuações.
No longa, ele é Lucky, um ex-cozinheiro da Marinha que aos 90 anos segue sua rotina com disciplina: higiene e cuidados pessoais, exercícios físicos, ida à lanchonete, ligeiras interações com vizinhos e conhecidos e conversa com os amigos em um bar. Chegou ao anonimato da idade avançada cheio de sabedoria, autenticidade e mansidão, entretanto, mesmo com uma saúde de ferro, Lucky começa a sentir o medo da mortalidade, um sentimento que ninguém deseja pensar, porém, é comum quando a velhice chega. Mesmo respeitado e querido pelos amigos, o vazio, a solidão, a rotina são inevitáveis.
De maneira brilhante, é na simplicidade do roteiro que, em nenhum momento ultrapassa a modéstia, que Lucky é um belíssimo filme. A parceria entre os roteiristas Logan Sparks e Drago Sumonja e o diretor John Carroll Lynch rendeu uma narrativa singela na qual o medo de morrer tem lugar e é uma consequência natural da humanidade mas ele também é como um despertar para a vida. Assim, existe mais vida do que morte em Lucky.
Diálogos lúcidos e expressivos entre Stanton e David Lynch lançam possibilidades para reflexão sobre a existência e o significado da vida, utilizando eventos aparentemente ordinários criados com bastante perspicácia . Lynch atua com um magnetismo fora de série, crível em cada expressão e palavra. Em cenas de intensa revelação das emoções, Stanton alcança notável destaque pela naturalidade que faz um grande ator, com destaque para uma das suas principais falas em um bar, diante de amigos. Ele provoca um impacto sagaz que penetra na alma, descomplicado, sábio e sensível. Inevitavelmente, ele traz o sorriso e a razão.
Vencedor do júri ecumênico do Festival de Locarno 2017, Lucky é profundamente sincero em cada peça. Desde a ambientação do cotidiano de uma cidadezinha americana no deserto, passando por esta rotina entediante na qual o sumiço de um cágado vira assunto com teor filosófico. De fato, as melhores conversas nascem a partir de assuntos meramente comuns, nas quais as pessoas estão desnudas de suas mais dissimuladas máscaras. Tudo isso que não seria valorizado em outro filme, aqui ganha uma bela dimensão humanista. Dá para perceber a honestidade dos diálogos.
Com igual qualidade e perspicácia, a composição dos planos e escolha de determinados elementos na mise en scène têm insights incríveis, a notar, o desfecho contém dois elementos da natureza que são relacionados ao protagonista e expressam uma louvável simbologia do poder da vida. Embora sem muita experiência em direção, John Carroll Lynch fez um trabalho exemplar, com o compromisso de deixar fluir as atuações dos titãs David Lynch e Harry Dean Stanton. Esta generosidade na direção de atores está muito conectada com a própria generosidade do filme.
Lucky é como um amuleto da sorte. Quando os pensamentos são tomados de medo e morte, lembrar de tudo o que foi feito nesta jornada é celebrar a nossa humanidade e agradecer pela vida.
Nota: Descanse em paz, Harry Dean Stanton. Você vive no e através do Cinema.
Nota: Descanse em paz, Harry Dean Stanton. Você vive no e através do Cinema.
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