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Por  Cristiane Costa ,  Editora e blogueira crítica de Cinema, e specialista em Comunicação Uma Mulher Alta (Beanpole/ Dylda, 201...

Uma Mulher Alta (Beanpole / Dylda, 2019)





Por Cristiane Costa,  Editora e blogueira crítica de Cinema, especialista em Comunicação



Uma Mulher Alta (Beanpole/ Dylda, 2019), drama Russo do jovem cineasta Kantemir Balagov (de Tesnota) é uma obra prima com toda a nobreza, potência e arte presentes no sentido desta palavra. Indicado pela Rússia como melhor filme internacional no Oscar 2020 e inspirado na obra "A guerra não tem rosto de mulher", de Svetlana Aleksiévitch (vencedora do Nobel), o longa tem tantas virtudes que não cabem em uma crítica e nem mesmo em uma opinião muito técnica. É um filme que deve ser testemunhado pelo olhar sensível do espectador como um pacto de confiança em compreender as vidas feridas pela guerra.  É esplêndido em cada recriação de época, em cada detalhe dramatúrgico, em cada emoção das protagonistas. É brutalmente intenso, visualmente atemporal, delicadamente poético em toda sua densidade dramática.




Vencedor do Prêmio de Melhor Direção e do Prêmio da Crítica na Mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes e integrante de várias seleções internacionais em outros festivais, o longa apresenta uma equipe bastante jovem e competente, com destaque para o diretor (28 anos), a diretora de fotografia Ksenia Sereda (25 anos) e respectivamente as talentosas atrizes Viktoria Miroshnichenko e Vasilisa Perelygina, 25 e 23 anos. O filme  conta com produtores de excelente envergadura para dramas independentes marcantes como Alexander Rodnyansky e Sergey Melkumov do excepcional Leviatã do premiado diretor Andrey Zvyagintsev.


A história é ambientada em Leningrado (atual São Petersburgo)  em 1945 em um pós - guerra com suas ruínas e vidas brutalmente dilaceradas. A cidade é uma sobrevivente em um dos cercos da Segunda Guerra Mundial e está destruída assim como estes habitantes que a muito custo psicológico e nenhum apoio econômico e político precisam recolher os destroços emocionais, físicos e materiais e seguir seus destinos com alguma esperança. O enfoque em duas heroínas, as amigas Yva Sergueeva (a mulher alta, interpretada por Viktoria Miroshnichenko) e Masha (Vasilisa Perelygina) expõe uma precisa dicotomia para o roteiro e sua execução - delicadeza e crueldade - como as mulheres foram violentadas (e ainda precisam lidar com esta  violência)  no dia a dia.  Ainda que universal como drama de pós - guerra, Uma Mulher Alta é um drama grandiosamente feminino e se estabelece como um filme que traz uma perspectiva narrativa bem rara no Cinema Contemporâneo.




Yva tem um filho, Paschka (Timofey Glazkov) e trabalha em um hospital de guerra ajudando a cuidar dos soldados feridos. Após ser dispensada da linha de frente por causa de um trauma, ela retorna ao papel de muitas mulheres da época, a cuidadora de enfermos.  De presença discreta, apesar da altura, como personagem, ela tem um desenvolvimento notório e crítico para o exito da narrativa: é uma mulher alta, porém frágil , sem jeito e facilmente influenciada por Masha, sua amiga. 



É uma jovem bastante leal a quem ama mas também bastante solitária, sem chão, sonhos e referências, evidências que demonstram uma brutal vulnerabilidade. Mais adiante, o espectador compreende os reais motivos desta construção da personagem, assim, ela tem um  protagonismo peculiar, uma personagem única, solidária,  misteriosa, complexa, e em reconstrução de sua identidade, podendo realizar ações cruéis, frias e corajosas a mando de outras pessoas ou por escolhas pessoais. Estas contradições entre fragilidade e violência tornam Yva uma personagem singular que ressalta o drama destas vidas feridas. 






A singularidade de Yva dá título internacional ao filme: "Beanpole". Neste caso, se refere aos seus atributos físicos e como ela interage com o ambiente e com as pessoas. Em diferentes cenas, ela provoca um estranhamento não apenas pela altura, mas porque ela é desajeitada e reprimida, ela é como um corpo que ainda está tentando se conhecer e se encaixar à realidade do cotidiano, às emoções e desejos que mantem ocultos em seu interior. É uma personagem feminina que desperta a curiosidade e a ser observada nas entrelinhas, incluindo seus desejos reprimidos pela guerra. Yva é uma mulher bem crescida, porém sua sensualidade (e sexualidade) estão em amadurecimento, um desabrochar que apenas ela poderá explorar pouco a pouco. Por conta desse aspecto, o roteiro se torna interessantíssimo a partir da metade da projeção. 






Masha traz uma outra perspectiva de heroína do pós - guerra. É uma mulher de beleza refrescante e exuberante que combina a garota que perdeu a juventude com a mulher que estava à disposição dos homens e seus prazeres na frente da batalha. Embora seja mais perturbada, abusiva e manipuladora em suas atitudes, principalmente com Yva, ela também é expansiva, esperançosa e  enriquece a narrativa com outras dimensões do ser mulher: a maternidade, o desejo e o sexo, o casamento, a prostituição, a amizade feminina, o trabalho. 



É muito bem interpretada por Vasilisa Perelygina com uma atuação cheia de complexidades que mostra dolorosamente os destroços da destruição da alma feminina durante a guerra. Em uma das melhores cenas,  quando ela vai visitar os pais do namorado, sua alma se desnuda em traumas incuráveis, dilacerantes. Ela é a expressão de como as mulheres foram humilhadas em sua auto-estima e têm que enfrentar os obstáculos relacionados também ao gênero e preconceitos de natureza social, principalmente em ambientes familiares tradicionais como seu envolvimento com um jovem de outra classe social. Ainda que crente no amor e na esperança, Masha continua sofrendo as consequências de ter sido uma mulher da guerra a servir homens; ela encarna as mulheres endurecidas por seus corpos violentados de diferentes formas, por se venderem por um prato de comida, um par de calçados, pela sobrevivência. 





A linguagem cinematográfica empregada enfatiza a densidade dramática e realça  essas nuances complexas dos personagens e da dinâmica do ambiente, apoiada por um apurado trabalho fotográfico, impecavelmente em sintonia com a direção de arte e a palheta de cores específica com uso de cores vivas e recorrentes como verde e vermelho. A disciplina estética de Kantemir Balagov é extraordinária na composição de variados planos que são como pinturas de épocas de uma Leningrado marcada no tempo com suas cicatrizes. Essa grandiosa estética valoriza a recriação de época e ressalta as polaridades entre a natureza humana destruída pela guerra e as cores marcantes que permanecem como a beleza da vida a ser reconstruída. 



É um filme raro que tem potência de se consagrar como obra prima e é um dos melhores do ano com forte competitividade para ser vencedor na categoria de melhor filme internacional no Oscar 2020. Além de sua execução polida e impecável,  explora palavras, gestos, olhares, sentimentos de forma a dar ao espectador o benefício de explorar os dramas do pós - guerra sob uma perspectiva que não é vista muito nos cinemas: os pontos de vista das mulheres e seus conflitos, dúvidas,feridas, inseguranças etc.   O espectador tem que se conectar emocionalmente com cada nuance, seja nos excepcionais personagens, atuações, cenários, seja em estabelecer uma compreensão de que se trata de um verdadeiro drama das mulheres da guerra. 





Esta empatia pelo Feminino no roteiro potencializa a dolorosa jornada por esta cruel realidade do pós guerra e do sofrimento que ainda permanece na reconstrução de vidas.  Neste longa,  é notório (e lindo de ver) como o diretor Kantemir Balagov é um talento nato do Cinema Russo, bastante disciplinado e sensível e com uma parceria diferenciada  com a DOP Ksenia Sereda.  Ele apresenta sua doação integral a um filme inesquecível que conta uma história sobre destino, sobrevivência e segunda chance. 


A câmera adentra o psicológico destas protagonistas com delicadeza e sinceridade, testemunhando tragédias que permanecem interagindo com um pouco de esperança. Elas estão aprendendo a ser, a viver, a pertencer.  A guerra tirou-lhes a juventude, o regozijo, o amor,  o que é perceptível em variadas cenas, entre elas, uma das mais dolorosas é quando Masha  experimenta um vestido. Parece um acontecimento cotidiano, porém é bem significativo. O espectador poderá perceber o sentido dramático deste momento.  Em uma de suas declarações,  o cineasta diz: " o que aconteceria com uma mulher depois que a guerra terminasse, quando houvesse uma mudança tectônica em sua mente e em sua natureza uma violação de sua natureza que obviamente ocorreria depois?"



O diretor teve uma precisa visão artística de como os elementos da linguagem cinematográfica poderiam ser articulados de forma a expressar como estas mulheres se sentiam e o que elas tinham a revelar.  Ele não utiliza estes recursos cinematográficos para fazer um filme bonito e premiado em festivais, mas a beleza de sua orquestração está em permitir que estes elementos trabalhem a favor das protagonistas, explorando suas condições e sentimentos e deixando no ar as reflexões e incertezas que serão levadas para os pensamentos e emoções do público. Uma Mulher Alta é grandiosamente lindo e devastador, um filme que permanece após os créditos finais. Memorável e único.




Estreia nos cinemas São Paulo, 12 de Dezembro. Rio de Janeiro, 19 de Dezembro. Verifique programação dos cinemas. Uma distribuição Supo Mungam Films 







Fotos e citação do diretor:  uma cortesia por Supo Mungam Films - distribuidora do filme

2 comentários:

  1. Eu não estava muito interessado nesse filme até ler o seu texto. PArece que esse diretor russo tem potencial mesmo e ele ainda não tem 30 anos!

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    1. Brauns, obrigada pela confiança. Acredito que você irá gostar e valorizar uma obra dessa magnitude feita por um cineasta tão jovem. Belo!
      Abraços,
      Madame Lumière

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