"Eu não penso que exista algo de natural na morte" (La vanité)
Por Cristiane Costa, Editora e crítica de Cinema MaDame Lumière e Especialista em Comunicação
Na gênese do Cinema está sua capacidade de reproduzir a realidade da forma que melhor pareça ao diretor, inclusive com uma boa dose de irrealidade cujo artificialismo em cena combina bem com temáticas que ainda são absurdas para a sociedade tradicional. Com essa abordagem, "La Vanité", mais recente longa de ficção de Lioner Baier (Longwave) apresenta uma melancólica e bem humorada comédia dramática sobre o suicídio assistido.
"Eu acredito que para ser bem sincero em um filme, sobre as emoções e objetivos dos personagens, você não deve hesitar em entrar em uma irrealidade bastante ampla, pois, surpreendentemente, essa é a melhor maneira de compreender a realidade." (Lionel Baier)
David Miller (Patrick Lapp) é um solitário homem idoso que, após longa dedicação ao seu negócio, optou pela morte assistida. Imerso em memórias cujos planos são alternados entre o presente e flasbacks desse passado, em um quarto de hotel e distante de qualquer distração familiar, ele dá continuidade ao plano metódico de morrer como uma escolha consciente de livre - arbítrio. Nesse ambiente isolado e privado, ele conta com a ajuda de dois estranhos: Esperanza (Carmen Maura), membro de uma sociedade de suicídio assistido e Treplev (Ivan Georgiev), um garoto de programa russo que entra por engano na história e se transforma em uma personagem cômica indispensável para esse sucinto roteiro.
Com boa aceitação na Suiça, na qual ganhou o Swiss Film Prize de melhor ator (Patrick Lapp) e melhor ator coadjuvante (Ivan Georgiev), o diretor buscou referências contemporâneas e históricas na própria realidade desse país, uma nação democrática e evoluída em legislação que regulamentou o direito à morte. O propósito do filme não é utilizar uma polêmica crua na claustrofóbica mise en scène. A narrativa é estruturada como uma fábula, com picos de drama absurdo com tons lúdicos e surreais. Para o bel prazer do público de Cinema mais independente, embora o cineasta não teve o intuito de ser tão consistente e profundo no desenvolvimento sobre a eutanásia, seu recorte narrativo é muito eficiente, pois ele usa de uma atmosfera irrealista para contar ao público um assunto sério e universal, a morte, da qual ninguém escapa.
A direção de arte com uma cenografia colorida retrô e excêntrica com tomadas em um studio bem fechado cria uma sensação mais amistosa de claustrofobia ao esperar gradativamente pelo suicídio. Essa pressão pelo momento é suavizado pelo recurso do senso de humor, principalmente o do jovem ator Ivan Georgiev que tem um talento nato para a comédia de humor negro. Ao observar esse enxuto elenco em uma situação intimista que, em teoria, exigiria empatia, confiança e companheirismo entre as personagens, o estranhamento é evidente porém intrigante. Alguém optaria por morrer ao lado de estranhos em um hotel barato? É mais provável que não. Nesse artifício valorizado pelo diretor está um traço de antinaturalidade do ato de morrer nessas condições. Tal escolha foi bastante inteligente para corroborar os efeitos lúdicos da história na experiência com o filme.
Nesse sentido, o trio de personagens não sabem lidar com esse suicídio assistido e tem diferentes reações, a maioria são cômicas. Por vários momentos, não é possível levá-los a sério, principalmente quando o plano da morte não funciona como um plano de ação estruturado. Em contrapartida, a sinergia entre as atuações mantém o espírito vivo onde o lado obscuro da morte cria tensão e expectativas. Patrick Lapp é um experiente ator e já havia trabalhado com Baier em "Longwave". Ele incorpora bem o lado soturno e depressivo, pesado pelas culpas e ausências. Carmem Maura , como nos filmes de Almodovar, dá ao público a experiência das excentricidades e da ligeira dose de insanidade daqueles que concordam com questões que nem todos concordariam. É possível compreender as motivações de seu personagem e um humanizada atitude. A grande revelação é Ivan Georgiev, carismático, divertido e com um jeito dócil e inocente que funciona bem na figura de um prostituto que topa tudo, mas chora ao ver sangue.
Na linha dramática, nas quatro paredes desse quarto de hotel é como se a vida fosse uma prisão para Lapp. A ansiedade pelo golpe final do suicidio é o que ele deseja, em desconforto com esse ambiente fechado ao lado de estranhos e com memórias que ele não consegue suportar, dividido entre a nostalgia, a culpa e a redenção. Talvez, para muitos, viver seja isso: à espera da morte, estar ao lado de estranhos ou de pessoas conhecidas que não conhecem bem e que são como estrangeiros. À medida que a maturidade chega com algumas rugas a mais, estar amargurado e nitidamente melancólico com um sentimento de frustração e de ter perdido tanto tempo na vida. No final das contas, os estranhos podem ser mais humanos e surpreendentemente afetivos do que a própria família e os amigos, e a vida não é tão cruel e vilã como muitos pensam.
Em um tempo relativamente curto e bem utilizado de 75 minutos, La Vanité é um belo conto de fadas moderno sobre a escolha pela vida e pela morte e o que está no meio de ambas. Todos os espaços vazios do roteiro, com destaque para o desfecho, são deixados ao público como lacunas a serem preenchidas. Ele faz pensar sobre esses últimos minutos de vida que passam tão rápido como uma retrospectiva que tenta recuperar erros e acertos de toda uma jornada. A proximidade com a morte não é uma experiência natural e acolhedora, por mais que ela seja parte do ciclo da vida. Mas, uma constatação é relevante: temos várias mortes em vida e elas ajudam a trazer sabedoria, compaixão e redenção.
Estreia no Brasil: 14 de Julho.
Distribuição Supo Mungam Films
Fotos e trechos da entrevista com diretor , uma cortesia Supo Mungam films
filme muito bom, assistindo...
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