Com distribuição pela HBO, o filme "O conto" (The Tale, 2018) foi produzido para a TV e recebeu várias nominações nas premiações em festivais voltados para a Televisão e/ou Cinema independente como o Festival de Sundance, o Globo de Ouro, o Spirit Awards, entre outros. O longa tem como destaque o seu roteiro, edição e atriz principal (Laura Dern). É um drama tão equilibrado e bem executado entre o elenco, direção e narrativa que merecia ter ido ao circuito de exibição nos Cinemas Brasileiros.
Dirigido pela documentarista Jennifer Fox, o longa-metragem tem a honra da valiosa presença de Laura Dern, que se adequa perfeitamente a este tipo de drama contundente que aborda um tema doloroso: abuso infantil e pedofilia. Com roteiro escrito pela própria cineasta, baseado em suas experiências pessoais, "O Conto" é centrado na proposta, de maneira bem racional, mas também profundamente incômoda.
Na história, Jennifer/ Jenny (Laura Dern) é uma documentarista que está realizando uma não - ficção sobre vítimas de estupro na infância. Após sua mãe Nettie (Ellen Burstyn) encontrar um de seus escritos com detalhes intrigantes da infância e puberdade da filha, Jennifer passa a lembrar da relação próxima que tinha com seus treinadores de equitação, Mrs. G (Elizabeth Debicki) e Bill (Jason Ritter). Como tem experiência em documentários, Jenny vai voltar seus olhos à realidade presente para encontrar seus antigos coaches e trazer à luz certas revelações.
A narrativa é desenvolvida com planos do presente e em flashbacks, nos quais Jennifer se dedica a investigar seu passado e tentar relembrar qual era a natureza deste relacionamento. De forma bem perspicaz, a roteirista utiliza um texto dentro do texto, ou seja, usa o gênero narrativo conto para contar a história, escolha que torna o filme mais denso e inteligente. Além disso, ao utilizar e explorar o conto, a cineasta também cria uma tensão entre o que foi escrito em papel e no passado (infância) versus o que está sendo narrado na atualidade (vida adulta). Desta forma, essa dicotomia tensiona a história mas também possibilita explorar e libertar o potencial narrativo do longa.
Não há como não valorizar o equilíbrio dessa produção e a articulação da diretora e roteirista para tocar em um assunto tão pessoal e traumático. Só considerando esse aspecto, o longa merece todas suas indicações e reconhecimentos, além do mais, um dos aspectos louváveis da obra é observar que, até mesmo uma documentarista acostumada a filmar o cotidiano, também pode se manter cega ou perdida diante de um abuso sofrido no passado. Diante das dúvidas e perguntas, Jenny realiza uma jornada investigativa como se fosse um recorte do documentário da sua vida. Essa transição de gêneros que adentram outros gêneros torna o filme bem mais interessante.
Jenny admirava tanto os seus coaches que os desejou e se aproximou dos agressores, mas não parecia ter total consciência da natureza da relação. Ela simplesmente os "amava" e tinha uma imaginação fértil como várias crianças em transição para a puberdade. No mais, especificamente, Mrs G. e Bill são aquele tipo de casal acolhedor, sedutor, misterioso, diferente. Um casal perigoso e fingido que facilmente seduziria qualquer pessoa, traço da história que estabelece um jogo tenso e em suspense na imaginação de Jenny e, consequentemente, no público. Essa combinação de thriller e drama favorece a conexão e o engajamento com a história.
Sem dúvidas, este é um roteiro com variadas virtudes, principalmente, pelo fato de que estamos diante de um filme espinhoso que, com bastante tato, mostra cenas de pedofilia, mas que em momento algum é um filme visualmente vulgar na decupagem. Pelo contrário, é impressionante a tranquilidade como a narrativa se desenrola, bem apoiada por uma montagem de alto nível. Mostra uma falsa "paz" que, pouco a pouco, vai se apropriando de um efeito devastador até o grande clímax.
Assim, o personagem de Bill é extremamente repugnante porque ele representa o homem que ganha a confiança do (a) menor e prepara o terreno para o ataque. Essa dissimulação sedutora é um traço clássico dos piores agressores sexuais. Para tornar estas memórias mais traumáticas, ele não age sozinho, então entra a figura da mulher no papel de Mrs G, igualmente intrigante e dissimulada, ela é uma incógnita, ora aparentando culpa, ora nenhuma emoção.
Digna de aplausos, Isabelle Nélisse realiza uma interpretação incrível como a jovem Jenny. Segura e madura para sua idade, ela contracena em cenas bem difíceis, sendo este o filme que mais lhe deu liberdade para o protagonismo . Pela sua atuação, fica evidente que Jennifer Fox conseguiu ampliar ao máximo o valor de sua direção para a qualidade fílmica, assim, respondendo bem à direção de atores pré(adolescentes).
Mais uma vez, Laura Dern tem total domínio do personagem. Jenny é uma mulher que não teme ir atrás da própria história, mas tem suas inseguranças e miopias. Ainda que, de forma inconsciente, ela tem problemas para se firmar de vez no relacionamento com Martin (Common), o que indica certa relação com traumas passados ou seu atual desconforto. Seguramente, esta é uma performance especial, tanto que ela foi indicada ao Globo de Ouro como melhor atriz em série limitada ou filme para a TV.
Ainda que o tema seja difícil de digerir, "O Conto" é imperdível e se destaca como um dos melhores filmes lançados em streaming nos últimos dois anos. É de longe uma obra diferenciada lançada em uma plataforma e/ou canal de TV. Ao mesmo tempo que o filme deixa espaços abertos para o espectador refletir sobre negação, perdão, culpa, desejo, sexualidade, redenção, ele não perde de vista o seu foco, que é trazer à memória e à discussão utilizando o gênero ficção em longa-metragem abusos que aconteceram e seguem acontecendo na realidade de muitas crianças e jovens. Esses dramas devem ser denunciados, dentro e fora das obras audiovisuais.
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