Por Cristiane Costa, Editora e blogueira de Cinema, especialista em Comunicação
Os dez primeiros minutos de "O Castelo de Vidro", adaptação para o cinema do best-seller homônimo de Jeannette Walls e dirigida por Destin Daniel Cretton é uma prova ao julgamento prematuro de qualquer espectador. Trazem aquele momento de hesitação se o filme funcionará bem ou não. Narrado como a biografia da autora sobre sua família disfuncional, o longa começa de uma maneira não muito atrativa, aparentemente mediano e apegado ao sentimentalismo dos dramas comerciais americanos. Subitamente, o filme começa a fluir na sua natureza dramática, conquista pelas beiradas, cresce nas atuações e mostra a importância da escolha de um bom elenco.
Ambientado no interior dos EUA e em Nova York e com uso de flashbacks que colaboram para o vai e vem de acontecimentos na família Walls, o filme tem Brie Larson, a vencedora do Oscar de melhor atriz por "O quarto de Jack" como a protagonista Jeannette. Alternando o papel com sua versão pré-adolescente, performada pela talentosa Ella Anderson, Brie Larson contracena com Woody Harrelson como seu pai Rex e com Naomi Watts no papel da mãe Rose Mary. Com destaque para a relação pai e filha, esse trio de atores é o responsável pelo filme não cair no sentimentalismo, considerando que a história tem eventos comuns e tristes em qualquer família como o alcoolismo, a pobreza, o fracasso e vários traumas da convivência e das ausências.
Rex e Rose Mary são os pais que defendem um estilo de vida nômade na criação dos filhos. Por incrível que pareça, o livro narra que o pai era averso a qualquer padrão mais confortável de vida, chegando a ser um sem teto. Mesmo em uma cultura americana que propaga a objetividade, a prosperidade e o sucesso individual, Rex e Rose Mary não acreditam nisso e impõe aos filhos não ter acesso a uma infância abundante. O drama gira em torno de uma trajetória itinerante na qual os filhos têm dificuldades para estudar, estabelecer amizades e raízes, ter uma "vida normal".
Interpretado com natural maestria por Woody Harrelson, Rex é o adorável cabeça-dura que entre o jeito turrão, oscilante entre o mau humor e a graça, tem o amor dos filhos mas também provoca rejeição e conflitos. Jeannette é a filha mais próxima e madura, que confia, ama, tolera e aposta nos pais durante a infância mas que, na fase adulta, quer ter uma vida abastada e pensar em seu novo casamento e projetos. Nesses elementos dramatúrgicos, em especial no choque de personalidades entre Rex e Jeannette, estão a principal espinha dorsal do drama e por conseguinte, o poder de encanto e empatia dessa cinebiografia.
Duas questões relevantes na experiência com o filme é perceber que a relação entre pais e filhos tende a ser tensa e contraditória por excelência. A outra é notar que essa família carrega uma faceta disfuncional que, na verdade, é normal e deveria ser tratada como algo natural, afinal não existem famílias de "comercial de margarina".
Sobre a primeira problemática, ao mesmo tempo que amamos os nossos pais e temos orgulho deles, podemos sentir raiva, vontade de crítica-los e se libertar de suas ideias e convicções. Nesse sentido, o elenco faz a diferença para catalisar esses sentimentos e o perfil de Brie Larson para essa personagem é muito adequado para atingir esse nível. Ela é uma atriz verossímil que consegue performar bem em situações muito dramáticas sem reagir exageradamente às emoções (o não ao fake overracting). Ela ainda conserva a densidade emotiva e esse domínio interpretativo faz dela uma excelente atriz para dramas independentes. Para uma criança (e mulher) que tem um pai alcoólatra fracassado e o ama muito, esse equilíbrio em cena é elogiável.
Sobre a segunda questão, acompanhar a trajetória de uma família disfuncional cria um elo de empatia, ou seja, é como dizer que "aquele problema entre pais e filhos ali em cena não é um problema apenas de Jeannette e seus irmãos, pode ter sido um problema meu em algum momento da minha vida ou de alguém que eu conheço ". Parte significativa da disfuncionalidade vem de Rex, por isso a experiência de Woody Harrelson é vital elevar a qualidade. Dele vem a mola propulsora dos conflitos. Rex tem os lados bruto e amoroso que contam muito para o realismo da história. Ele tem a incrível capacidade de ser amado e odiado em menos de cinco minutos.
Os homens pais de família que têm o vício do alcoolismo e são provedores instáveis despertam emoções bem contraditórias. Quem tem ou teve pai alcoólatra, sabe o quão traumático pode ser essa experiência para qualquer pessoa. Alguns vivem como vagabundos e fracassados que despertam muito mais esse paradoxo: ninguém os quer por perto pois são agressivos e obstinados mas também há aqueles que são acolhedores, autênticos e engraçados. Outros já são trabalhadores demais e começam a declinar na primeira dose de álcool da semana. Entre altos e baixos, eles vão despertando a compaixão. Assim é o Rex de Woody Harrelson, um fracassado teimoso e legal, um papel que caiu como uma luva para o ator. Nesse aspecto, o longa ganha bastante com seu personagem à medida que a narrativa evolui e Harrelson consegue projetar seu perfil cômico-dramático. As arrastadas duas horas são perdoáveis e os afetos pelos Walls surgem naturalmente.
O Castelo de Vidro traz o conforto de saber que, em pouca ou grande parte da vida, ter uma família disfuncional é um presente contanto que ela seja cercada de amor e união. E, verdadeiramente, a gente percebe onde o amor existe mesmo que as manifestações de afeto não sejam perfeitas, que os membros da família não saibam expressar seu amor de maneira cálida, que os conflitos tragam mais sofrimento que resoluções. O filme funciona bem como uma autoajuda e também expõe um vital ensinamento em tempos de intolerância e ódio: o lar importa, a família importa. Independente das dificuldades que uma família passa ou tenha passado, o lar é o melhor porto seguro. E se ele não for um porto seguro, ainda vale a pena lutar para que ele seja.
Ficha técnica do filme Imdb O Castelo de Vidro
Fotos, cortesia Paris filmes
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