Esta crítica menciona alguns discretos detalhes de cena e mostra imagens de planos, necessários para exemplificar características de linguagem cinematográfica empregadas por Bertolucci.
Por Cristiane Costa
Bernardo Bertolucci é um diretor que gosta de experimentar novas formas de realizar seus filmes explorando a linguagem cinematográfica , a fusão de elementos como a música, o som, os movimentos e enquadramentos de câmera com o intimismo das personagens, em especial, o desejo e sentimentos que quebram regras convencionais e saem do lugar comum. Com seus clássicos como O último tango em Paris e Os sonhadores, Bertolucci tem trabalhado intensamente na experimentação da linguagem cinematográfica como uma manifestação artística diferenciada em seus longas, Assédio (Besieged) é um deles. Reconhecido como um abrangente e autoral exercício de linguagem no Cinema, normalmente o filme está presente em aulas e artigos científicos que exploram sua riqueza de direção cinematográfica.
Thandie Newton é Shandurai, Africana exilada na Itália.
Personagens femininos de Bertolucci costumam entrar em processo de libertação.
A história é sobre o despertar do amor e do desejo entre Shandurai (Thadie Newton), uma bela exilada Africana e estudante de medicina na Itália e o italiano compositor musical e professor de piano Jason Kinsky (David Thewlis) . Após Shandurai ver o seu marido, um professor de escola primária, ser preso na África por um ditador local, ela vive seu exílio particular com a esperança de ver o esposo livre. Ela torna-se empregada doméstica na casa de Kinsky e o patrão se apaixona por ela envolvendo ambos no desabrochar da relação. Shandurai fica dividida entre a paixão e sua condição de esposa.
Esse filme funciona como um ritual de sedução no qual os elementos da linguagem cinematográfica são conduzidos de forma a explorar a descoberta da paixão e do desejo e, com ela, a câmera inquieta de Bertolucci é parte muito ativa no processo criativo e testemunha o turbilhão de emoções dos protagonistas. Sendo Shandurai uma mulher casada, dependente financeiramente de moradia e trabalho na casa de Kinsky e uma mulher que é desejada pelo patrão, a sedução de Kinsky é um assédio e a coloca em uma situação delicada para qualquer mulher; porém sob a direção de Bertolucci, bom entendedor do desejo no Cinema, esse assédio não se torna invasivo e imoral, pelo contrário, ele é a mola propulsora do romance. Kinsky sabe deixar Shandurai em paz e à vista, o que é um comportamento muito mais sedutor e eficiente para a história. Cabe bem mais a ela escolher o seu destino amoroso.
Uma bela história de amor construída a partir de contrastes
e do desabrochar do desejo
De uma maneira muito intensa nos movimentos e enquadramentos da câmera, o diretor não deixa nada passar desapercebido. É indiscutível a dedicação de Bertolucci à decupagem com controle na direção em Assédio. Shandurai se envolve no mundo de Kinsky não somente ao limpar a sua casa com cuidados, profissionalismo e responsabilidade mas principalmente em apreciar a cultura desse homem tão introspectivo e misterioso, de pele alva e diferente de sua etnia; aqui Bertolucci envolve o espectador em um potencial romance inter-racial e todos esses aspectos são libidinosos e atrativos. De uma maneira muito natural, o público é provocado a torcer pelo casal e sua felicidade e faz parte do jogo voyeurista de observar a sedução.
Além das diferenças econômicas e étnicas na história, o romance tem um engajamento político e libertário e evoca o amor e o desejo sem limitações impostas pela sociedade. Não deve ser visto com olhos acusadores de que Bertolucci resolveu realizar um filme no qual o patrão branco se envolve com a empregada negra. Na contramão desse pensamento, Bertolucci tem certos cuidados narrativos para não estigmatizar esse longa e está se referindo a um filme sobre o amor e o desejo e, acima de tudo, uma realização com apurado senso estético e de poderosa linguagem cinematográfica à serviço do explorar das relações humanas.
Cortes entre planos nos dois protagonistas com presença de expressiva música tocada
no piano por Kinsky: um sedutor jogo de comunicação entre eles.
O diretor usa bastante a música como um dos componentes que conecta os dois apaixonados. Shandurai não perde suas raízes africanas e se vê dançando e cantando os ritmos de sua Terra, enérgicos, alegres, descontraídos e embalados por batuques. Kinsky a observa e fica fascinado. No contraponto, ela se perde no próprio foco na obrigação de doméstica e pára o seu mundo por alguns instantes por Kinsky, ela o ouve tocar sublime música clássica no piano e cede às emoções pouco a pouco. O interesse pelo mundo do outro e o desejo são crescentes, assim como os consequentes conflitos. Em algum dos momentos mais fascinantes desse intocável flerte, ela se sente tão atraída e ao mesmo tempo tão apavorada pelos sentimentos que diz " Eu não entendo a sua música". Ele também tem repentinos ataques passionais na ânsia de possuir o seu amor, no desespero de que ela atenda o seu "Por favor, me ame!".
A construção de uma sequência de teor passional:
Câmera inquieta mimetiza as emoções da cena em
excepcional exercício de linguagem cinematográfica.
Assédio é um belíssimo filme na sua linguagem cinematográfica, construído com fortes contrastes e aproximações entre dois mundos pessoais bem diferentes. Em uma das construções de planos chave, Shandurai sobe a escada e se aproxima de Kinsky, que está tocando uma linda música. A câmera testemunha os passos dela, sua decisão por uma aproximação mais pessoal. Em seguida, essa paz da música clássica é interrompida com um conflito verbal e fisicamente impactante que joga para o público um intempestivo momento de confissão e desilusão amorosas. Esse momento do filme é essencial para compreender como Bertolucci entrega um registro autoral de sua direção com forte habilidade de usar a linguagem cinematográfica como expressão de emoções.
O desejo é explorado com outras estratégias de construção de planos como
enfocar as reações de Shandurai em diversos momentos.
Ela é a protagonista principal e quem tomará a decisão sobre esse amor.
No geral, a linguagem empregada não é fácil até mesmo para o resultado da montagem, que é fantástica. Essa direção tende a incomodar porque é visualmente inquietante como corpos que se desejam mas não podem se tocar. A todo o momento, a câmera é muito mais que um guia, ela catalisa o desejo em permanente construção da narrativa. Bertolucci realiza enquadramentos de variados tipos, explora bem o espaço da casa de Kinsky, onde se passa grande parte da história, com diferentes usos de luz e movimentos de câmera, utiliza a música como uma personagem e entrega com grandiosidade um dos planos sequências mais intimistas de sua filmografia.
Tipo de enquadramento a partir de cima :
escada no prédio da casa de Sr. Kinsky. Shandurai no térreo.
Como aprendizagem a respeito dessa história de amor e desejo, a relação entre Shandurai e Kinsky está acima da relação convencional empregada x patrão, o que torna o filme dolorosamente dramático. Seria cômodo se o roteiro optasse por uma história de amor facilmente digerível , no entanto, Bertolucci gosta de provocações e, certamente, mais dos meios narrativos do que só os fins das histórias. Os protagonistas aprendem a conviver um com o outro sem abandonar os sentimentos por mais sofrimentos que eles tragam. Esse tênue intimismo bem conduzido pela direção de atores de Bertolucci é um traço positivo na experiência com o longa. Newton e Thewlis não têm um química intensa como provável casal porém são suas diferenças que os tornam realistas para essa história de amor. São pessoas exiladas em seus próprios mundos, com rotinas solitárias, que se interessam por suas presenças, que se apaixonam.
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