Juliet (Kerry Fox), David (Christopher Eccleston) e Alex (Ewan McGregor) são amigos e dividem um mesmo apartamento de classe média. Decidem procurar pelo quarto morador, encontram um homem misterioso e atrativo e o selecionam como novo colega de quarto, porém o mesmo é encontrado morto e deixa uma mala cheia de dinheiro. Os problemas começam a ocorrer, o que coloca à prova a autenticidade desta amizade e o quanto ela pode ser impactada pela ganancia e por todo o horror que as pessoas revelam em suas verdadeiras personalidades.
O roteiro é trabalhado de forma muito perspicaz e evolutiva, trazendo ao expectador a questão: Continuarão amigos após encontrarem muito dinheiro e um homem morto? No início, ao buscar um novo colega de apartamento, é perceptível que Juliet, David e Alex não tem qualquer tipo de relação comum entre eles. É notado que são amigos excêntricos, aparentemente sem máscaras um para o outro e sem papas na língua. Eles são íntimos, com um senso de humor bizarro e liberdade de dizer o que pensa, sem melindres. Se por um lado, este traço de amizade demonstra que são ligados por uma química nada convencional, por outro lado abre espaço para questionar se eles são realmente quem demonstrar ser. É evidente que há um aura de mistério e humor negro em suas personalidades, porque eles agem muito naturalmente em situações nas quais as pessoas agiriam de forma mais dramática; exemplo disto é quando encontram o homem morto e uma mala recheada de grana, é como se eles tivessem encontrado um gato morto e um carteira com trocados.
Ter muito dinheiro sem o dono por perto é sedutor, portanto os três amigos dão um jeito de sumir com o corpo e esconder a grana, mas a cova é muito rasa , os problemas começam a ser desenterrados como gente perigosa que procura pelo dinheiro e a polícia no encalço. Nesta jornada de tensão, a narrativa torna-se mais psicológica com uma triangulação dramática nos personagens amigos, comprovada em cenas mais claustrofóbicas nas quais eles estão restritos ao apartamento, onde tudo pode acontecer e a qualquer momento. Na cenografia, o sótão assume o lugar de uma mente perigosa, que planeja, observa, esconde, enlouquece. São os traços de loucura , personalidades dúbias e comportamentos homicidas que cooperam para um filme mais intrigante, com uma ótima atmosfera de suspense, muito bem orquestrada com uma edição que conserva um ritmo perturbador nas quais as horas não são percebidas. As externas também são muito boas ao selecionar lugares como um matagal e clima noturno com buracos cavados e dilaceração de corpos ou, em clima diurno, com investigação de policiais e a paranoia e o medo da descoberta dos assassinatos. A violência é gráfica e em linha com a atmosfera e estética da década e, para valorizar o aspecto voyeurista do suspense, Boyle tem um estilo muito interessante de enquadrar algumas cenas, a partir de ângulos como câmera alta ao Juliet ser observada por David a partir do sótão e close ups em cadaveres, partes do corpo e objetos, o que só aumenta o efeito moderno da linguagem cinematográfica no gênero suspense, além disto, Boyle também recorre ao estilo próprio de iniciar o filme com planos que fazem parte do meio ou fim do longa.
Os três amigos é um elenco muito bem selecionado, com ótima atuação e uma química convincente a ponto de fazer pensar que eles poderiam até formar um trio de amantes. Kerry Fox tem um estilo muito peculiar, de mulher misteriosa, sedutora e bem humorada que pode endoidecer de uma hora para outra e mostrar as garras. Christopher Eccleston é o mais convencional da turma e tem reações de introspecção, timidez e medo, mas normalmente pessoas com estes comportamentos podem ser muito perigosas. Alex é o mais extrovertido e divertido e, portanto, o que aparenta ser o mais influente e esperto. No geral, há espaços na narrativa que demonstram que a amizade pode evoluir para um romance entre eles, seja genuíno por atração física e intelectual, seja forçado por motivações interesseiras e relacionadas ao dinheiro e à sobrevivência. Essa dualidade de intenções entorna o caldo de Cova Rasa pois a amizade vai sendo colocada à prova, a ganancia se eleva, o medo pertuba. Além do mais, a atuação natural e, ao mesmo tempo, tensa e tragicômica do trio está relacionada à forma mais independente de dirigir os atores neste filme. Eles não fizeram elaborados laboratórios e extensos ensaios, pelo contrário, Kerry Fox, por exemplo, chegou a receber textos pouco antes de filmar, o que torna a interpretação dela uma expressão de memorável talento. Em uma das cenas mais emblemáticas de Cova Rasa, ela surta entre risos e lágrimas.
Cova Rasa é um suspense imperdível, tanto do ponto de vista técnico como também de uma história na qual a amizade é impactada por dinheiro e os valores mudam de pessoa para pessoa. O filme traz à tona o quanto o homem mostra sua verdadeira face, ou a oculta, motivado pela ganância. Ele também demonstra o quanto os amigos perdem o valor ou nunca tiveram para certas pessoas.
Título original: Shallow Grave
Ano/ país: 1994 (Uk)
Gênero: Suspense, Thriller, Crime
Diretor: Danny Boyle
Roteiro: John Hodge
Elenco: Ewan McGregor, Kerry Fox, Christopher Eccleston
5 comentários:
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